O que define uma boa adaptação?
Esta é uma boa pergunta. Se a resposta fosse fácil, julgar remakes, reboots e adaptações pro cinema seria a maior moleza, mas é um foco de constante debate se podemos afirmar que “O original é sempre melhor”, se somos injusto com remakes e com as várias adaptações na história que são necessárias para fazê-los funcionar.
Eu pessoalmente creio que uma adaptação é boa, se ela mantém os mesmo ideais por trás da obra original. Claro, não é o único fator que mantém uma obra boa, mas acho que uma adaptação que altere a história para se focar melhor no que a obra original queria passar é melhor do que uma que seja bem fiel cena-a-cena, mas passe uma mensagem completamente diferente.
Descobrir o elemento que faz a história funcionar e mantê-lo como pilar da história: se isso for mantido, a cena que não foi passada adiante ou o personagem que teve sua origem mudada, passam a ser detalhes.
Motivo pelo qual acho Kick-Ass uma péssima adaptação, mas isso é assunto para outro dia. O assunto do post é A Família Addams, com foco na websérie Adult Wednesday Addams que, devo lembra-los, não é uma adaptação oficial da Família Addams da mesma maneira que a série de tv ou os filmes foram. Primeiro vamos falar do que veio antes de Adult Wednesday Addams.
Assustadores, malucos, misteriosos e macabro: eles são a Família Addams, icônicos personagens criados por Charles Addams na década de 1930 como uma tirinhas em quadrinhos, mostrando uma família de costumes macabros em situações cotidianas, chocando as pessoas normais com seus hábitos. Apesar dos quadrinhos terem feito relativo sucesso, os personagens só foram imortalizados nos anos 1960, décadas depois com a sitcom: The Addams Family. E praticamente tudo o que foi feito com os personagens depois disso foi feito adaptando a sitcom e não as tirinhas.
A família Addams tinha dois grandes focos de humor que sustentavam a série inteira, o primeiro foco é obvio, eles são macabros, bizarros e as pessoas normais têm medo deles, o estilo de vida deles é diferente e por isso é engraçado em contraste ao que esperaríamos de uma família comum. O segundo foco é mais sutil: eles são felizes. Os Addams estão entre as famílias mais unidas e amorosas da televisão, e apesar do estilo de vida sinistro deles e de sua obsessão por tudo que é macabro, eles são ótimas pessoas. Gentis, bons anfitriões, educados, e bem amigáveis. Em contraste, as pessoas normais que encontram os Addams geralmente os antagonizam por medo dos Addams ou por querer tirar vantagem da ingenuidade e excentricidade deles. Isso, pois era uma série feita para questionar noções. A nossa noção de “família perfeita” ou como chamamos no Brasil “família de comercial de margarina”. Os Addams não se parecem em nada com a família de um comercial de margarina, mas são tão funcionais e perfeitos quanto, mostrando que não é necessário ser o ideal do modelo familiar tradicional para ser feliz.
Outra noção que a sitcom questiona é do que é aceitável. Os Addams são inaceitáveis, eles gostam de torturar uns aos outros e criam feras selvagens e ainda assim, são todos pessoas muito mais decentes do que as pessoas com valores aceitáveis de comportamento, mas que tentam roubar a sua fortuna ou simplesmente se livrar deles por medo. Todo mundo que encontra os Addams vai julgá-los duramente ao invés de aceitá-los pelos vizinhos maravilhosos e amigáveis que eles são. Então quem é que realmente não tem valores? Eles ou os normais? Como Clopin disse em Hunchback of Notre Dame da Disney, “here is a riddle to guess if you can, who is the monster and who is the man?”
A série foi revolucionária em vários sentidos. Na época, todo casal de sitcom era formado pela dinâmica: O-homem-é- burro-arrogante-e-grosso-mas-tem-um-bom-coração-e-um-bom-caráter + A-mulher-é-pé-no-chão-e-inteligente-e-lamenta-ter-casado-com-um-panaca-mas-fica-do-lado-dele-mesmo-assim-pois-o-ama. Estereótipo que segue firme e forte até hoje. É só assistir o trailer de Inside Out da Pixar que estreia esse ano ainda e ver que essa é exatamente a dinâmica dos pais da protagonista. Esse tipo de casal é uma saída boa para se colocar na televisão, pois as pessoas querem que o público se espelhe com um casal disfuncional em que o homem é o estereótipo do tonto durão e a mulher a conformada que arrumou o melhor que conseguiu.
E Mortícia e Gomez Addams? Ah, eles eram o oposto, o episódio nunca girava em torno de um conflito entre eles. Eles estão apaixonados. E digo apaixonados mesmo, esses dois já estão casados faz dez anos, mas parece que estão na lua de mel. Gomez espontaneamente para o que está fazendo para beijar Mortícia. Eles fazem atividades juntos, amam dançar, eles compartilham sua vida um com o outro, eles dividem igualmente as responsabilidades domesticas e a autoridade com as crianças. Foi dito que eles pareciam o único casal da televisão capaz de fazer filhos realmente. Gomez é mais impulsivo e otimista, e Morticia é mais calma e sábia, mas isso nunca é feito para fazê-los entrar em conflito, e sim para fazer com que se completem. Não são um casal para o público se espelhar e sim para o público almejar ser. E então a série nos anos 1990 foi adaptada para um longa-metragem estrelando Raul Julia, Angelica Huston e Christopher Lloyd. O filme é meio ruinzinho. Mas pega o espirito da série. Os Addams ainda são calorosos, o humor é no mesmo estilo, ainda temos pessoas normais mesquinhas querendo prejudicá-los por motivos errados. A essência dos Addams ainda estava lá. O problema do filme é simples, a história é um lixo. Acontece, às vezes você tem a faca e o queijo na mão para fazer um grande filme, mas não consegue pensar numa história decente, uma lástima. Nos filmes, a personagem Wednesday Addams (Vandinha, na versão brasileira) recebe muito mais destaque do que recebeu nas tirinhas e na série. Na série, Wednesday era uma menininha simpática e fofa, que adorava animaizinhos como suas aranhas, e bonecas como sua Marie Antoniette, decapitada que nem a rainha. Que chorava ao ouvir no conto de fadas que o cavaleiro sanguinário matou o pobrezinho do dragão. Já nos filmes ela é retratada como uma menina sádica completamente inemotiva, que bizarramente parece notar que o mundo à sua volta não segue os mesmos valores e costumes que sua família. A interpretação de Cristina Ricci para Wednesday nos filmes é provavelmente a mais famosa Wednesday de todas, e a personalidade que mais marcou o personagem.
Em especial no segundo filme onde ela confronta diretamente a hipocrisia das lições toscas que ela aprendia no acampamento de verão. Não sou tão fã dessa interpretação da Wednesday como uma garota sem emoção nenhuma. Mas era um tipo de personagem que não existia nas encarnações anteriores da família, então casou com a proposta do filme.
O filme originou uma série animada. Que abusava do fato de ser um desenho animado para ser bem caricato quanto às esquisitices dos Addams. Na série, os Addams eram frequentemente antagonizados pelos seus vizinhos, os Normenmeyers que acreditavam que meramente por existir, os Addams representavam uma ameaça à moral e aos bons costumes. Os Normenmeyers tinham um filho, e esse filho era um amigo muito próximo de Wednesday e Pugsley. No desenho, novamente Wednesday parece ser o membro da família com mais noção de que as outras famílias não compartilham o gosto macabro dos Addams. Ela usa o termo “normal” para se referir a uma colega de escola, e sabe que o estilo de vida do filho do vizinho é diferente do dela. A Wednesday do desenho é em particular minha favorita. Assim como no filme ela parece ser muito mais madura que sua idade sugere, e seu maior entretenimento é torturar fisicamente seu irmão Pugsley. Mas ela é mais emotiva, menos sádica e não tem uma aura de vilania que a Wednesday do filme tinha. O que me incomoda na Wednesday do filme é justamente isso, ela parece uma pessoa genuinamente maligna. Lembra a Mandy de The Grim Adventures of Billy and Mandy. Por exemplo, as outras encarnações da filha dos Addams, como a da sitcom ou do desenho, ou mesmo do ignorado desenho dos anos 1970, parecem ter um afeto enorme por Lurch, o criado dos Addams, a do filme é a única que não demonstra esse lado mais amoroso e carinhoso com o criado. Após a adaptação animada, os Addams ganharam outra série de TV, onde a maioria absoluta dos episódios eram remakes dos episódios da sitcom original, e onde Wednesday era uma versão exagerada de sua personalidade do filme. E então em 2010, a Família Addams virou um musical na Broadway. Onde Wednesday era o grande foco da história. A peça girava em torno de Wednesday, na peça, uma adolescente, anunciando seu casamento com Lucas, um rapaz normal, para ambas as famílias, e o conflito familiar que decorre da noticia. Novamente, Wednesday parece ser a que tem uma melhor noção do quão ela e sua família não são normais. Eventualmente ela e Lucas conseguem a aprovação dos pais, Lucas prova que ele tem um pouco de loucura dentro de si, e os Addams ajudam os pais de Lucas a serem menos conservadores e se abrirem mais a loucuras e isso salva o casamento decadente deles.
Mantendo o pensamento que abriu o post, a peça não é uma boa adaptação. A família sofre muitos conflitos internos com Pugsley mentindo para a família inteira, e Gomez e Morticia quase se divorciando. O tema da união e funcionalidade dos Addams entra em conflito com uma moral de que no fundo eles tinham poucas diferenças da família de Lucas. Sendo que enfatizar as diferenças e aceita-las é meio que a ideia da obra, ao invés da mensagem de “no fundo somos iguais.”
E é isso. É nesse ponto que os personagens estão estagnados na cultura pop.
A MGM está com projetos para lançar um longa-metragem animado da família no futuro, mas é nesse passo que estamos hoje.
E chega! Tudo isso só para passar o backgroung da franquia e da personagem, com isso tudo tendo sido revisto, vamos ao que importa.
ADULT WEDNEDSAY ADDAMS: Adult Wednesday Addams é uma websérie, criada e protagonizada por Melissa Hunter que não é uma adaptação oficial, e sim um projeto independente de fã, financiado pelo kickstarter. A série mostra a personagem Wednesday, já adulta tendo acabado de sair da casa dos pais, morando em Los Angeles e lidando com situações do dia a dia.
A websérie tem muito em comum com as demais encarnações da Família Addams. A principal fonte de humor vem do contraste entre Wednesday sendo macabra e as pessoas normais se sentindo desconfortáveis perto dela. Ela fala constantemente sobre assassinato e de vez em quando por humor demonstra alguma habilidade sobrenatural. A diferença é que em todas as encarnações anteriores da família, eram os normais que iam para a mansão dos Addams e entravam no mundo deles, agora é Wednesday indo para o mundo fora da mansão e entrando no mundo normal. Wednesday é a personagem que mais tem sua personalidade mudada de adaptação para adaptação, nessa websérie é visível à influência que os filmes tiveram na personagem, que sempre casualmente comenta o fato de que ela já foi presa e está sendo caçada pelo FBI e pode ou não já ter matado pessoas. Mas apesar disso ela jamais cometeu um ato de maldade na série que não seja em autodefesa. Ela é calma, serena, e sente facilidade em ver as fraquezas emocionais das pessoas com quem fala. E conforme suas encarnações anteriores, é plenamente ciente de que as pessoas com quem ela convive não possuem os mesmos hábitos que ela.
Porém, mesmo que o único foco seja a Wednesday, em uma versão crescida e mesmo que não seja uma adaptação oficial da Família Addams, a série ainda é uma série dos Addams, e a pergunta é: a crítica social que marcou os Addams ainda está lá? Sim. De tempos em tempos, Wednesday se depara com o que as pessoas normais têm de pior. Patricinhas que sentem que não podem recolher o cocô que o próprio Shi Tzu deixou na rua, pois é nojento. Babacões que a insultam na rua. Assediadores sexuais, entre outros. E ela responde a eles como a Addams que é.
Um dos meus episódios favoritos é quando Wednesday tenta entrar em uma clínica de aborto e é parada por um maníaco religioso que a chama de assassina e de monstro, e a acusa de ser incapaz de reconhecer as ações do Diabo. Wednesday calmamente se vira para ele e lista os incontáveis psicopatas cujas ações foram influenciadas pelo Diabo, como Charles Manson e Ted Bundy, e que se o Diabo resolveu que agora ele age dando a mulheres a chance de escolher, então que o Diabo realmente perdeu a mão.
Ela encontra também pessoas que não são cruéis que ela só assusta mesmo, não são todos episódios só com esse lado. A fonte central de humor ainda é o contraste cultural entre Wednesday e todo mundo, onde a cruel visão de mundo dela faz todos se assustarem.
Mas a pergunta é: Adult Wednesday Addams é uma boa adaptação? Faz jus ao histórico da família Addams? Eu acho que faz na medida do possível, mas não é complicado fazer a Família Addams funcionar, pois apesar de tudo o que eu disse nesse post mostrando ter mais que isso. No fundo no fundo, o conceito por trás de qualquer encarnação dos personagens é coloca-los em contraste com as pessoas normais, usar seu estilo de vida como fonte de humor e deixar os personagens normais desconfortáveis.
Sério. A cada releitura não só a personalidade da Wednesday muda. Se ela é mais velha ou mais nova ou gêmea de Pugsley também muda. Se a Vovó Addams é mãe da Morticia ou do Gomez também muda. O parentesco do Tio Fester com a família muda. Se Thing é uma mão decepada andando sob seus próprios dedos ou uma criatura que vive dentro da mansão da qual só vemos a mão também muda. Isso tudo são meros detalhes. O importante é se o tema do choque cultural ainda é a base das histórias.
Claro que com Wednesay afastada de sua família, não podemos ver o lado amoroso dos Addams e só ficamos com o lado psicótico da garota, talvez essa websérie seja um bom spin-off e uma adaptação meramente ok. Mas ela ainda faz o que fez a Família Addams funcionar. Agora, eu sei que sitcons e suas longas vidas têm mostrado bem que a mesma piada pode funcionar ainda depois de 6 anos ou 10 anos ou até mesmo 18 anos. Mas a Família Addams estreou nas televisões americanas 51 anos atrás. Como é possível que meio século tenha se passado e os Addams ainda funcionem? Eles são idênticos ao que eram 50 anos atrás em questão de hábitos e do tipo de comentário ou interpretação macabra que eles dão do mundo a sua volta. O tipo de comportamento que eles vão exibir não evoluiu com as décadas. O que mudou foi o mundo ao redor deles.
A sitcom estreou nos EUA com um contexto. Eram os anos 1960. Muita coisa estava acontecendo nos Estados Unidos nessa época. Os Hippies estavam surgindo. Os Beatnicks já tinham surgido. Ideias novas na juventude estavam surgindo. E o mundo estava em guerra fria. E os americanos tradicionais estavam morrendo de medo que o vizinho fosse um comunista. O “homem diferente” era uma direta ameaça à sociedade e era muito relevante pregar os hábitos tradicionais e garantir que o vizinho não era comunista, nem fumava maconha, nem teve um filho que fugiu de casa, nem nenhuma dessas coisas. Pois ameaçaria o estilo de vida da nação inteira.
Nesse contexto, faz muito sentido ver o quão os Addams eram temidos e odiados por seu estilo de vida, independente do fato de que eles eram extremamente simpáticos e amigáveis.
Um dos episódios mais icônicos da sitcom é justamente o em que um motoqueiro rebelde quebra sua moto na frente da mansão dos Addams e é acolhido pela família até a moto ser consertada. Ele, que era odiado pelo próprio pai por seu estilo rebelde ao ponto de ter fugido de casa, ficou surpreso pelo amor que recebeu da família, e quando seu pai que foi buscá-lo de volta na mansão, crítica os Addams, o motoqueiro os defende, dizendo que eles são uma família muito mais decente do que o pai e seu conservadorismo.
E nos anos 1990, o mundo não estava mais em guerra fria, os movimentos sociais dos anos 1960 estavam enfraquecidos, e ainda sim, os Addams ainda eram desconfortáveis. Mas as pessoas que se sentiam mal com a presença dos Addams ainda eram justamente as mais conservadoras da sociedade. A professora de Wednesday em um ponto do filme chama Morticia para conversar sobre a garota. Ela deu um trabalho na escola para os alunos trazerem fotos de seus grandes heróis. E Wednesday trouxe um desenho de uma ancestral, que foi queimada como bruxa no século XVI. Quando ela cita o resto da classe como um contra-exemplo, ela mostra que um aluno trouxe a foto do presidente como herói pessoal. Que na época era George Bush Pai.
No segundo filme, Wednesday resolve improvisar na peça do dia de ação de graças. Peças que como sabemos costumam celebrar a confraternização e amizade entre colonos e índios nos Estados Unidos, como uma maneira de disfarçar o genocídio que os colonos causaram ao povo nativo americano. Wednesday decide acrescentar uma cena em que os índios preveem como a colonização vai destruir o povo deles e decidem matar os colonos durante a ação de graças. E com isso ateia fogo em todas as patricinhas que a ridicularizaram ao longo do filme inteiro por seu estilo. E agora, nos anos 2010, Wednesday se vinga dos machões de academia que gritam vulgaridades para ela na rua, chamando psicopatas especialistas em causar terror psicológico em suas vítimas para irem até a casa deles gritar sobre como eles vão mata-los e esconder o corpo. Quando eles contestam que vão chamar a policia Wednesday responde que agressão verbal é legal nos EUA e vai embora confiante deixando seu assediadores para serem torturados psicologicamente por horas a fio. O projeto dá MGM não parece que vai sair do papel tão cedo, mas é questão de tempo até alguém novamente querer adaptar a Família Addams para o cinema. Pois é um estilo de humor que enquanto a sociedade julgar o estilo de vida do próximo, enquanto filhos estiverem sendo expulsos de casa por pais conservadores, enquanto usarmos o termo “normal” para nos distinguirmos de alguma minoria, o contraste que eles criam com a sociedade sempre será algo que vai funcionar. E provavelmente isso significa que é uma fórmula capaz de funcionar para sempre.
Não necessariamente uma boa noticia.
Sempre me perguntei como o Tim Burton nunca se envolveu com a Família Addams. Não só pelo estilo macabro, mas essas críticas ao estilo normal, perfeito e suburbano dos EUA é meio que o que ele faz de melhor. Edward Scissorhands que o diga. Seria uma adaptação que combinaria com ele muito melhor que metade do que ele faz hoje em dia.