De uma coisa eu não tenho duvida. Existem poucos desenhos animados tão adultos quanto Adventure Time passando hoje em dia na televisão.
E isso não é por falta de animação para maiores de 18 que passam no [Adult Swim] ou no FX, mas é que pra mim, ser uma animação impropria para menores e ser adulta são coisas diferentes. Você vê o Peter Griffin fazer uma piada sobre vaginas, e isso é um tipo de piada que não contamos quando têm crianças na sala, mas que na verdade elas são as que mais se divertem com essas piadas. A molecada ama um bom sexo e violência como fonte de humor, em especial porque elas sabem que aquilo é algo que supostamente elas não podiam estar vendo. Se elas já sabem como o sexo funciona, elas entendem algumas referências não-tão-sutis que colocam nos filmes da Dreamworks, e dão aquela risada travessa de “hehehe, entendi algo que eu não devia.”
Dando um exemplo da minha experiência com South Park. Eu adorava South Park quando eu era criança, assistia toda semana no Multishow desde os dez anos de idade e rachava o bico com o Cartman xingando, o Kenny morrendo e os palavrões correndo soltos. Porém, conforme eu fui ficando mais velho eu fui revendo aqueles episódios e vi que eles consistiam de criticas sociais fortes, bom uso de subtexto e metáforas, e no geral, por trás do humor escatológico, possuía uma camada de humor mais inteligente e sutil que eu não notava.
E é exatamente essa a diferença. Aquele conteúdo que passa batido por uma criança de dez anos, mas que quando ela tem 16 ela reassiste e entende, esse é o real conteúdo adulto. Pois não é o que “a criança é jovem demais para ser exposta” e sim o que “a criança não tem experiência de vida o suficiente para entender realmente” que define o quão adulto é uma série ou filme. E isso é o que coloca Adventure Time em um patamar acima de qualquer Family Guy da vida.
Adventure Time aperfeiçoa a técnica, popular por seu uso em Harry Potter, na qual apresentamos o protagonista com 11 anos, e a cada temporada ele envelhece um ano, e a história amadurece com ele. Conforme ele entra na adolescência as histórias inocentes vão perdendo espaço para personagens morrendo, personagens tendo que lidar com o luto, responsabilidades, e romance.
Só que aproveitando que eu puxei a comparação com Harry Potter, eu ressalto. O romance de Harry Potter é um romance idealizado. Um cenário onde a grande maioria dos personagens encontrou o futuro marido ou futura esposa no colégio. Uma leve subversão em que “não foi no primeiro namoro, foi no segundo.” Mas ainda sim, super idealizado. Todos os filhos saíram de um casamento feliz e duradouro onde ninguém traiu ninguém.
O que não é ruim, é a escolha da autora que não quis abordar esse tipo de tema na obra. Ninguém é obrigado a querer. Ainda mais em obras com um público infantil forte. O interessante é que embora muitas sitcons mostrem os personagens com ficantes, one-night stands, gravidez não planejada e tudo o mais, obras ligadas ao público infantil contornam esses assuntos, e deixam tudo bem idealizado, que nem Harry Potter, para proteger as crianças desses assuntos. E é ai que Adventure Time brilha.
Adventure Time mostra seus personagens se relacionando sem nenhuma idealização. Personagens mordidos por causa de ex, sexo implícito, personagens com fetiches, sexo sem amor, amor sem sexo, a série mostra de tudo, e esse post vai listar quais são os momentos da série que deixam isso mais em evidência.
O RELACIONAMENTO ENTRE JAKE E LADY RAINICORN:
Jake e a Lady Rainicorn (Lady Iris na dublagem nacional), namoram desde o primeiro episódio da série e sempre amaram muito um ao outro. Jake é muito importante para a Lady e a Lady é muito importante pro Jake. Muito fácil vê-los ficando juntos para sempre. Porém todos os fãs são surpreendidos quando na quarta temporada Lady revela pro Jake que está grávida, e a reação do Jake deixa bem clara o quão planejados foram os filhos.
Após o susto da gravidez, eles continuam juntos, e continuam namorando. E quando os filhos nascem, Jake tenta fazer parte da vida deles até eles atingirem a fase adulta, e ama os filhos. E eles continuam namorando. Eles jamais se casam, mesmo após terem filhos em uma gravidez acidental. Finn questiona isso para Lady perguntando se Jake é marido dela ou não e ela responde que são somente namorados. Que conste nos livros de história da animação que Jake foi o primeiro personagem infantil a ter filhos acidentalmente sem casar.
Além disso, o casal deixa bem claro o quão gosta das intimidades um com o outro. Quando Finn está nervoso sobre estar prestes a dar o primeiro beijo, Jake explica para Finn como tudo vai dar certo e termina explicando todos as etapas da intimidade com uma mulher, dando o corpo da Lady como exemplo. E Lady por outro lado guarda fitas de vídeo eróticas que Jake filmou de si mesmo e deu pra ela.
Recentemente a série começou a abordar o fato de Jake ser bem ausente na vida dos filhos na fase adulta, mas ainda sim o amor que ele sente pelos filhos e pela namorada é inquestionável. Um casal espetacular.
OS RELACIONAMENTOS DE FINN:
Finn começa a série com 11 anos. E sempre teve uma queda pela sua amiga, Princesa Bubblegum (Jujuba na dublagem nacional), de quem ele também é cavaleiro e jurou proteger ela e seu reino. A diferença enorme de idade entre eles (Bubblegum tem séculos de vida, mas Finn acredita que ela tem 18 anos), faz com que o amor do Finn seja bem unilateral e isso fez Finn partir para outros rumos. Na terceira temporada ele tinha 13 anos e conheceu a Flame Princess (Princesa Fogo), e a partir dai fica interessante.
Flame Princess gostava do Finn, e Finn gostava dela, e os dois namoraram por um tempo. Porém devido ao fato de que o corpo da Flame Princess queimava a carne de Finn, ele mal podia tocá-la, abraça-la sem alguns empecilhos, e certamente não podia beija-la. Mesmo desconsiderando isso, caso ele a beijasse, a excitação dela podia ser tão grande que o fogo que ela gera poderia se tornar uma catástrofe climática e destruir o mundo.
Um monte de artifícios fantásticos para falar que o Finn, no começo de sua puberdade queria poder ter contato físico com sua namorada e não podia. A ideia de como lidar com intimidade, e com desejo sexual, e com querer mas sentir-se pressionado a não ter contato, é relativamente comum entre namorados que são jovens demais para fazerem essas coisas, mas já tem hormônios agindo.
O relacionamento de Finn com a Flame Princess terminou em um episódio estranhamente sexual, onde não só Finn tem um nada discreto sonho molhado com a Flame Princess (em que ela atirava rajadas de fogo na virilha de Finn e este sentia prazer), como esses sonhos eram resultado dele ter visto a namorada lutando. Existiram outras dicas, mas isso é um dos pontos onde fica mais claro que o Finn sente prazer com violência e com lutas. E nesse episódio ao ficar evidente que ele ficou excitado vendo a namorada praticar violência, nota-se que esse prazer é sexual. Enfim, para encurtar a história ele começa a manipular ela para fazê-la lutar de novo, acaba usando detalhes muito pessoais dela para manipulá-la, magoa ela pra caralho, age feito um babaca e leva um pé na bunda.
Ela já o perdoou, eles fizeram as pazes e voltaram a ser amigos, mas ele ainda não sabe lidar com isso e age feito um pateta perto dela querendo voltar. Normal.
Por ultimo, na sexta temporada, um Finn de 16 anos encontra seu pai, descobre que seu pai é o maior canalha do planeta. E na tentativa de não perder contato com o pai, ele acaba tendo seu braço arrancado e ainda sim não conseguiu se aproximar do velho escroto.
Finn se magoa, entra em depressão, e começa a lidar com sua depressão como? Pegando mulher. Ele resolve ir em festas e pegar as princesas de Ooo, casualmente, beijar na festa e não falar com elas de novo. Como maneira de esquecer da própria depressão.
A série retrata essa prática de Finn como decadente e como se o Finn tivesse no literal fundo do poço. Nesse processo ele faz com que uma abelha se apaixone por ele e sacrifique a própria juventude e liberdade de adolescente para virar uma adulta e ficar com ele. Mas ele não quer nada com a abelhinha, só quer pegar mulheres casualmente.
Essa vida depressiva do Finn sai pela culatra quando ele dando uns amassos na Lumpy Space Princess (Princesa Caroço), tenta fazer não passar do beijo, mas ela obriga ele a passar a noite na casa dela (sim, isso mesmo que vocês interpretaram), e pela reação do Finn não foi uma boa primeira noite passada com uma princesa. Ao acordar na casa da LSP ele viu a abelhinha cantando uma canção de amor para ele, mas ao invés de enxergar a abelhinha ele enxergou seu primeiro amor, Bubblegum. Lembrou-se de sua promessa de protegê-la e proteger seu reino, e saiu da depressão ao reencontrar sentido na vida.
E ganhou seu braço de volta ao fazer essa epifania. Por motivos que eu não tenho certeza.
Enfim, nas ultimas seis temporadas, a vida sexual do Finn foi tema de vários episódios, e não só ele dormindo com a princesa mais desagradável de Ooo mesmo não querendo por pressão. Afinal, embora não sejam o ato per se, beijos e ficadas e amassos são atos sexuais e vários episódios foram trabalhados com Finn lidando com como isso fazia ele se sentir.
E tudo de maneira bem não-romântica. Ele perdeu uma namorada por não saber lidar com seu fetiche por violência. E depois foi pegar meninas casualmente para escapar dos próprios problemas.
O RELACIONAMENTO DE BUBBLEGUM E MARCELINE:
Particularmente polêmico esse, e um dos subtextos de Adventure Time que mais chamaram a atenção. As duas personagens, Princesa Bubblegum, e Marceline, a Rainha dos Vampiros, a partir do episódio What is Missing da terceira temporada, passaram a dar indícios que a relação delas era de ex-namoradas. Nada explicito, porém estava o suficiente lá.
Os motivos para isso foram elas terem passado o episódio inteiro dando alfinetadas sobre estarem brigadas. E Marceline cantando uma música sobre como apesar delas serem inconvenientes uma para a outra, ela ainda deseja fazer as pazes, mas não sente que a iniciativa deveria partir dela.
Ao final do episódio, Jake acha uma camiseta preta que uma das duas tinha perdido e assume que era a camiseta de Marceline e devolve pra ela, porém Bubblegum admite que a camiseta era dela, e era o item que ela mais valorizava dela. A camiseta que Bubblegum tanto amava na verdade era um presente da Marceline pra ela de antes delas brigarem. Marceline reclamou que nunca a viu usando, e Bubblegum revela que ela usa, para dormir.
O episódio não deixa claro se elas não eram somente amigas muito intimas no passado. Mas deu brechas o suficiente. Para começar porque Marceline costuma chamar Bubblegum pelo primeiro nome, que é Bonnibell, coisa que nenhum outro personagem na série faz.
Outro episódio, revela Marceline precisando da ajuda de Bubblegum para rastrear uma bruxa que possuía seu bichinho de pelúcia. O episódio abre com Bubblegum acordando após uma noite de sono usando a camiseta de Marceline. Ela acorda e cheira a camiseta sorrindo.
Ao longo do episódio ela descobre que o bichinho de pelúcia era o que Marceline possuía de mais valioso e por isso a bruxa o queria. Então ela decide ajudar a amiga fazendo uma troca e dar para a bruxa outro item com grande valor sentimental incluído nele. Ela dá a camiseta que ganhou de Marceline para a bruxa, e a bruxa reconhece que o sentimento contido na camiseta era maior do que o bichinho de pelúcia.
Porém o bichinho de pelúcia era um presente que Marceline ganhou da sua figura paterna na época em que ela era uma criança sem teto vagando pelos destroços do mundo, um período particularmente sofrido da sua vida em que um homem a protegeu esse tempo todo.
Como o amor da Bubblegum pela camiseta seria maior do que o amor da Marceline pelo bichinho? Não com mera amizade.
Depois a dubladora da Marceline, Olivia Olson, confirmou publicamente que elas namoraram no passado, falando que ouviu isso do próprio criador da série Pendleton Ward. Então, sim, duas das protagonistas da série já tiveram um romance lésbico no passado.
Tem mais exemplos isolados ao longo da série. Um episódio com a Tree Trunks uma idosa elefantinha querendo dar uns amassos em público com seu namorado o Sr. Porco, e ofendida que todos se enojem e exijam que ela se esconda para pegar o namorado. Ou o BMO e sua ausência de gênero sendo constantemente trabalhada na série. A série faz seus personagens se relacionarem romanticamente e sexualmente (embora evite explicitar o sexo), e não faz a menor questão de idealizar e fazer o amor vencer tudo para seu público.
Sendo esses somente exemplos de casos lidando com a sexualidade dos personagens. O espectro de temas retratados de maneira não infantilizada na série é imenso. Desde metáforas para Alzheimer e demência. Depressão. Luto pela morte de personagens. Até mesmo ambiguidade moral e os personagens refletindo sobre qual é a coisa moralmente correta a se fazer e não encontrando respostas claras.
Apesar de passar no horário nobre de um canal infantil, Adventure Time é TV-PG, que é um valor na censura americana que melhor traduziria no Brasil como “Para maiores de 12 anos”, então apesar de sua fachada inicial de ser um desenho fofo e louco e sem noção para crianças. Ele esconde um desenho denso e cheio de reflexões para um público um pouco mais velho.
E talvez seja esse o motivo pelo qual se tornou tão forte entre os adultos. Por não infantilizar a si mesmo em ordem se ser mais atrativo as crianças. Afinal, mesmo com todos esses temas que as crianças mal conseguem realmente entender, o sucesso da série com o público infantil é imenso. A série conseguiu o equilíbrio perfeito entre ter um bom apelo infantil em seu visual e entre seus personagens, e ter uma camada forte de temas adultos para dar profundidade à obra.
E isso é um atrativo para os adultos assistindo maior que qualquer piada de duplo sentido que Shrek faça em seus filmes.