Tem que acabar o cânon – Tentar se conectar com a história original avacalhou Cruella.

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Cruella é um filme que a maneira como eu avalio depende muito do contexto.

Se for enquanto um filme que existe no vácuo, então o filme é ok. Meio bobo e não é grandes coisas, mas amarra a própria história de maneira carismática, tem personagens divertidos e surfa no carisma da Emma Stone. Nota: Fuck

Mas, enquanto filme de origem, é uma catástrofe. Nota: Fight.

Porém é uma catástrofe interessante de se pensar sobre.

O maior defeito do filme é sua pretensão em se conectar com o clássico da Disney: 101 Dalmatians, e o filme parece fazer um esforço imenso para nos lembrar de quinze em quinze minutos que ele é um spin-off e fazer conexões com o filme original.

E tudo se conecta tão mal, mas tão mal.

E eles insistem em conectar até os mínimos detalhes. No filme original de 1961, eles mencionam que Cruella é uma ex-colega de classe de Anita. Pois bem, no filme mostra que elas se conheceram na escola. No original Cruella chama Anita de “Anita Darling”, pois bem, aqui o nome de solteira dela é retconado pra Anita Darling, pra fazer a frase de Cruella ser meramente ela chamando Anita pelo nome de solteira. Vemos ela conhecer Roger e o incidente que inspirou Roger a compor a música Cruella DeVil, vemos Pongo, vemos Perdita, vemos ela conseguir seu icônico carro, vemos ela conseguir sua mansão e vemos ela ser batizada de Hell Hall, é um show de conexões, quase todo elemento do filme original está ali.

Até essa aqui fez um cameo.

Mas tem um elemento que não está em Cruella. Que eu senti que, diferente de todos esses detalhes e easter-eggs listados acima, era a única conexão necessária de se fazer. O filme não explica por que é que ela mata cachorro.

O filme insiste em ser uma história de origem para uma icônica vilã, 13ª melhor vilã da Disney no ranking oficial desse blog. E ele tem a origem de tudo, do seu cabelo dividido, de seu carro, de seu nome, de seu sobrenome, de seus capangas, sua carreira, sua casa. Mas não tem a origem de sua vilania. Seja ela em dar sua motivação para sequestrar 101 cachorros. Ou em incorporar nela alguns de seus elementos estéticos mais i,,cônicos que estão lá para reforçar seus aspectos negativos.

A Cruella do filme não fuma, e por extensão não usa sua piteira como símbolo de seu status e de seu desprezo pelos demais. Não joga cinzas nas coisas dos outros e não empesteia o cenário com sua fumaça verde.

A Cruella do filme em nenhum momento obtém as suas icônicas luvas vermelhas que dão a ela as mãos do diabo em pessoa.

E a Cruella do filme, apesar de estar em um filme sobre moda, em nenhum momento entra em contato com casacos de pele, nem demonstra ou menciona qualquer apreciação por eles. Embora a original tenha dito que peles são seu único grande amor, e, bem, o objetivo dela seja a produção de um casaco de pele.

O filme é uma brincadeira estranha com o filme The Devil Wears Prada, em que a personagem da assistente é, na verdade, uma pessoa com a mente grande demais para o mundo limitado de sua chefe e que quer desafiá-la com intervenções artísticas da moda. E ele poderia muito bem ser só isso. Não seria vergonha nenhuma.

Porque tem que acabar o cânon! Porra, é tua reimaginação da personagem, faz um filme só sobre ela crescendo no mundo da moda, sem precisar realmente fazer a ponte com o infame incidente do sequestro de dálmatas.

Incidente esse, que se o filme não falasse nada, deus sabe quanto tempo se passaria até acontecer, poderiam ser 30 anos (mas como o filme mostrou o Pongo filhote, dá para estimar que 101 Dalmatians deve passar no mínimo 2 anos depois de Cruella baseado em um google picareta que eu dei sobre em quanto tempo o dálmata estaria crescido e procurando por uma fêmea. Não sou especialista em dálmatas, nem em cachorro nenhum na real).

Enfim! O carisma do filme não tem nenhuma relação com 101 Dalmatians. Mas a pior cena do filme é feita para sugerir uma conexão direta com o filme original, sem conectar de verdade. Somente sugerir. E se momentos ruins forçam essa associação, a conexão segue fraca, pois Cruella se recusa a ser maligna, e portanto se recusa a parecer a pessoa que ela será na história original. Então o que aconteceu?

O que aconteceu é que os filmes de origens de vilões gostam de se vender como filmes de origem de vilões, mas omitem o aspecto vilanesco do personagem. E ao achar um jeito de trazer os elementos bons do vilão à tona, eles na verdade fazem uma grande bagunça entre a caracterização do personagem em sua origem e a caracterização famosa que levou os fãs do personagem ao cinema em primeiro lugar.

E tudo fica só num lugar muito estranho.

Então vamos falar um pouco sobre o filme, sobre suas conexões, sobre suas contradições, e sobre como a Era do Reboot tem operado nos últimos anos.

Ser vilã ou não ser… eis a questão.

Cruella se vendeu durante todo o tempo como a história de origem de uma vilã. Os pôsteres e trailers todos enfatizam o aspecto de maldade e insanidade de Cruella como o ponto mais chamativo do filme. E quando Emma Thompson foi escalada como a Baronesa, lá em 2019, a produção do filme descreveu a personagem como “Uma antagonista para Cruella que teve um papel fundamental para transformá-la na vilã que amamos hoje”. Quando o trailer saiu todo mundo comparou com o filme Joker, uma origem de vilão que saiu em 2019.

E bem. Uma história de origem de vilã tem uma única responsabilidade. Originar um vilão. Ou seja, ao fim da história de origem do vilão, o vilão nasceu. A história de origem de Darth Vader acaba quando Darth Vader nos moldes que conhecemos surge. Isso é o básico do básico da promessa que se faz quando se promete a origem de um vilão.

O problema é que Hollywood não gosta de dar protagonismo pra vilões. O que é algo que eu sempre notei, e inclusive eu fiz uma série de cinco textos aqui, sobre como muito produtor em Hollywood acredita que seus protagonistas não podem ser vilanescos, e sobre as estratégias às quais eles recorrem quando o filme se apresenta com essa proposta, mas não tem a intenção de cumpri-la de fato.

Eu inclusive prometi pra vocês no meu twitter que, quando o filme saísse, ele seria a parte 6 desta série. Mas aí eu assisti ao filme e achei que era um caso maior de “Tem que Acabar o Cânon”. Mais do que eu achei que seria pelo trailer.

Enfim, a estratégia adotada com Cruella foi a seguinte: ela não é maligna.

Tipo, de verdade. Ela obviamente é uma anti-heroína. Ela é uma ladra/golpista que passou a adolescência só podendo comer graças ao crime. E que após conseguir um trabalho honesto na profissão de seus sonhos, se vê trabalhando para a mulher que destruiu sua vida e, por isso, decide se vingar, destruindo todo o poder dessa mulher. Para isso ela usa as amizades que fez em sua vida de crimes e os impulsos que ela conteve na juventude para ter forças para se vingar.

Isso por definição não é vilanesco. E, por mais que seja uma anti-heroína, essa história não alimenta os defeitos da personagem que são os defeitos que marcam ela como vilã.

Cruella zomba da previsibilidade de pessoas malignas. O que é curioso, pois ela é bem imprevisível.

Cruella em suas encarnações anteriores é retratada como, acima de tudo, uma mulher sem absolutamente nenhuma empatia. Ela apaga seu cigarro na comida dos outros. Não dá ouvidos a nada que não seja sobre ela. Ela se sente no direito de tomar tudo o que é dos outros por dinheiro ou roubo. Ela trata seus empregados como menos que humanos. E vê nos animais somente matéria-prima para casacos de pele. Ela é completamente narcisista, e vive com o único objetivo de estar bonita e elegante. O mundo de Cruella gira em torno de si mesma, e por isso ela é capaz de matar e esfolar o animal de estimação de uma suposta amiga por um casaco. Pois não existe vida ou código ético que seja um real obstáculo para sua vaidade e seu capricho estético.

Essas características acima descritas estão no filme, mas não são as características de Cruella. São as características da Baronesa, a inimiga mortal de Cruella e a antagonista do filme. Aquela que Cruella destruiu.

A Cruella do filme-solo é empática. Quando ela trata seus amigos com desdém, ela se arrepende e se desculpa com eles. O filme retrata a relação dela com Jasper e Horace como uma relação de família, de três amigos que cresceram juntos. Enquanto nos outros filmes é uma relação de patrão-empregado clara. Ela também é uma mulher que é empática com cachorros, ela mesma adotou um cachorro no começo do filme que foi consistentemente mais que um animal de estimação, um amigo e um parceiro de vida para ela ao longo do filme inteiro.

Ela é compreensiva ao contexto. Ela sabe que não é culpa dos dálmatas que sua mãe morreu. Então ela não guarda rancor nenhum dos animais, e inclusive adota eles depois que manda sua dona pra cadeia.

Os defeitos de Cruella, que existem, são: ela é arrogante. Ela acha que ela é um gênio, uma mente brilhante para quem o mundo não abriu portas o suficiente e deveria abrir à força. Ela é violenta e impulsiva. Apelando pra força bruta quando sai do sério. Ela tem dificuldades de controlar seu lado selvagem, e se diverte quando ele não está contido.

E ela é, e isso não é um defeito necessariamente, não-conformista, tendo um grande tesão em contrariar o que é normal e substituir pelo que é subversivo. Motivo pelo qual sua ascensão no mundo da moda foi feita misturada com a ascensão do Punk em Londres nos anos 1970.

Enfim. Cruella não comete nenhum tipo de maldade na sua vida. Ela bateu carteira pra comer quando era uma órfã morando sozinha. E foi rude com as pessoas. Mas o filme mesmo mostra o advogado da Baronesa enfatizando que não existia nenhuma acusação legal possível de se montar contra Cruella.

Ela era só grossa e prepotente. Mas nossa, nada que firme um vilão. Grosso e prepotente o Han Solo também era.

Ela estava enfrentando uma literal assassina que matou tanta gente na vida para manter seu império, que ela mal reconhece as pessoas que se vingam dela sem contexto.

O diretor do filme disse, quando divulgava o filme, que o filme não seria preto-no-branco, e negou que a frase fosse ser um trocadilho. Essa declaração é péssima por dois motivos. O primeiro é que a frase “não ser preto no branco” no caso significa aqui significa “não ser um conflito envolvendo ideais opostos claramente definidos” e o filme é perfeitamente isso. Tem o lado do bem, e o lado do mal. E esses lados estão perfeitamente definidos no filme. A Baronesa é uma sociopata narcisista que tentou assassinar a própria filha duas vezes por não querer deixar de ser o centro da atenção. E a Cruella é a vítima dessas duas tentativas de assassinato tentando achar seu espaço no mundo e recuperar o que é dela por direito: sua herança familiar, que seu pai morto desejava que fosse dela.

Se a Branca de Neve gritasse com os Sete Anões e fosse grossa, a história ganharia uma escala de cinza que misturaria o lado do bem e o lado do mal? Pois é, eu acho que não.

Mas o foda, e também o segundo motivo, é o cara falar que fazer o filme não ser um preto-no-branco não era um trocadilho… obviamente se referindo ao icônico cabelo de Cruella metade preto e metade branco que é sua marca registrada. Pois bem, obviamente é um trocadilho, mas mais do que isso. O filme faz questão de mostrar que o cabelo é uma manifestação física do conflito entre bem e mal.

Porque Cruella tem algo que parece com uma dupla personalidade, mas não chega a nada que possa de fato ser diagnosticado como transtorno dissociativo de identidade. Mas existe um conflito de comportamento dentro dela. Simbolizado pelos dois nomes dela.

Temos a Estella, que é a menina do bem, que quer deixar a mãe orgulhosa. Mas dentro dela existe um lado negro chamado Cruella, que não quer ser calada e quer se impor. E que escolhe se impor através da agressividade. Esse conflito entre luz e trevas dentro de Cruella é de nascença, ela com essas trevas no coração que ela herdou da genética da Baronesa. E ela nasceu com um cabelo em uma coloração distinta que sempre indicou que ela era uma pessoa onde a luz e as trevas disputam. O cabelo é preto-e-branco, pois ele simboliza que existe uma dualidade entre o bem e o mal dentro da Cruella. O cabelo é preto-no-branco!

E enquanto as trevas de Cruella no filme não vão mais longe de ser rude, dar bengalada nos outros e não-conformista, fica implícito que conforme ela envelhecer as trevas vão piorar e ela vai ficar mais e mais parecida com a Baronesa…

que, eu repito, tem os mesmos defeitos vilanescos da Cruella original.

Ou seja. Embora no filme ela nunca vire má. Ela está destinada a ser má por genética. Ela é filha de uma mulher má, tem o sangue da mulher má, e ele só vai crescer.

e é por isso que no futuro ela vai começar a matar bichinhos?

Talvez… Mas a Baronesa em si nunca matou bichinhos. Ela só matou seres humanos. Mas nunca um doguinho.

Os dálmatas da Baronesa pareciam os únicos seres vivos do mundo com os quais ela se importava.

Então a Cruella é uma dona de cachorrinho que não machuca animaizinhos, mas ela está destinada a herdar toda a maldade de sua mãe biológica que também é dona de cachorrinho que não machuca animalzinho, então…

Cruella e os animais.

Existe um site na internet chamado Does The Dog Die, que originalmente servia para responder a pergunta: “algum cachorro morre nesse filme?”. E eventualmente foi se expandindo para responder um monte de outras sensibilidades que uma pessoa pode querer saber antes de ver o filme.

Enfim, eu acho fascinante ver que o filme de 1996, apesar de nenhum cachorro morrer, não passa em diversos dos testes do site no que diz respeito a bons tratos ao animal, mas Cruella passa em todos.

Teste de Cruella

 

Teste do Live-Action de 101 Dalmatians.

E a pergunta que fica na minha cabeça é: Cruella deveria ser um filme em que nenhum animal sofre nenhum tipo de abuso? Tipo… o filme não deveria ser o oposto? Por conta de seu material base?

O legado de Cruella DeVil na cultura pop é justamente esse. Ela não é uma das vilãs mais populares não só da Disney, mas do cinema, não porque ela quis dominar o mundo, porque ela matou pessoas, porque ela trouxe guerra e caos… foi porque ela tentou matar filhotes de cachorro.

No contexto da cena, Jermaine é o peixe de estimação da personagem, que foi feito de refém.

Vocês sabiam que, em 2013, fizeram esse musical que contava a história de Aladdin da perspectiva de Jafar? E em um número, vários outros vilões da Disney aparecem e dizem para Jafar que eles todos tinham boas intenções, e que tiveram a história distorcida, pois foi escrita pelos vencedores. Todos no fundo eram boas pessoas injustiçadas, exceto a Cruella, que aparece para reforçar que ela não. Ela só queria assassinar filhotinhos! A única ali que não tinha redenção.

Seu nome é sinônimo de crueldade animal. Inclusive assim que saiu o primeiro trailer, a internet, que vocês sabem como funciona, já foi acusar o filme de normalizar a crueldade animal, baseado no fato de que a Cruella teria sua perspectiva contada. E todo mundo sabe que a personagem é a personificação da crueldade animal. Essa crueldade é o centro do personagem desde sempre e o que mais fica dela na nossa osmose.

E ao mesmo tempo em que sim, obviamente o tabu da crueldade animal é mais forte hoje do que era em 1961 ou em 1996, talvez seja justamente por isso que a crueldade e maldade de Cruella sejam ainda mais fortes hoje que no passado. Que os motivos que tornam ela a personificação da maldade e alguém comparável ao diabo façam ainda mais sentido hoje do que faziam em 1996. E eu digo:

Qual é o propósito de fazer Cruella ser amiga dos animais?

Ser uma pessoa que é incapaz de fazer mal a um dálmata nem se ele tiver matado a sua mãe?

Quando eu vi o filme e, logo no começo, ela adotou o Buddy, eu juro que eu achei que esse doguinho era o anúncio do desastre. Se a Cruella adotou e amou um cachorrinho quando ela era uma criança inocente e do bem chamada Estella, então eu senti que ela eventualmente trairia e faria mal ao Buddy quando oficializasse sua transformação em Cruella. Como um sinal de que ela foi pro lado de lá. E de que a menina inocente que adotou o Buddy teria ido embora.

E não. No final do filme, Buddy ainda é o melhor amigo de Cruella.

Ali, do lado da chefa.

Isso tudo me soa tão estranho. A Cruella pet-friendly.

Os créditos do filme contém um apelo para que o público adote cachorrinhos, que é algo que foi parar lá, pois o PETA fez pressão para que fosse parar lá. E o PETA tá certo, pois o filme de 1996 causou um incidente de abandono de dálmata, de gente que comprou o filhotinho no hype do filme, e abandonou quando cresceu e não tinham como cuidar de uma raça tão energética.

Mas é isso. O filme inteiro parece estar conscientemente tentando descrever pessoas que não irritariam um militante pelo direito dos animais se existissem de verdade.

Se no filme original Jasper e Horace brigam com os dálmatas pelo uso da televisão, para mostrar que a relação deles é de guarda-prisioneiro. Em Cruella, Horace e os Dálmatas criam laços entre si vendo TV juntos e reagindo ao mesmo tempo. Mostrando que a relação deles é de amigos.

Apesar de o filme se passar na indústria da moda, com diversos personagens sendo estilistas, não existe uma única cena com nenhum dos personagens usando casacos de pele, ou sequer mencionando a existência deles. E justamente pelas nossas percepções quanto ao tabu, um casaco de pele poderia perfeitamente caracterizar a Baronesa como uma pessoa horrível. Mas não.

Aliás, menti acima. Existe uma única cena em que eles mencionam a existência de “pele de animal” como um artigo de moda.

Que é quando Cruella blefa para a Baronesa que ela transformou os dálmatas dela em um casaco. O que ela não fez, ela não machucou um pelo dos dálmatas, ela só queria assustar a baronesa.

Ela chega a ameaçar os dálmatas também pra Baronesa. Falando que vai matar a Baronesa e os Dálmatas juntos. Mas ela não mata a Baronesa, mesmo tendo toda a motivação do mundo para fazê-lo. Ela arma um plano elaborado para provar a psicopatia da Baronesa para seus pares, e mandá-la pra cadeia. E eu não poderia reforçar mais, ela adota os dálmatas.

Então o que eu quero jogar no ar é:

A Cruella precisa ser inimiga dos animais para ser a Cruella? Porque essa definitivamente não é, ela é o oposto disso. A única coisa que o PETA pode colocar na conta da Cruella no filme é que tem uma cena em que ela entra em um restaurante e pede um prato com carne.

E se a Cruella não precisar ser inimiga dos animais, e não for, então continuaria sendo possível conectar esse filme a 101 Dalmatians?

Porque por exemplo, o blefe que ela faz na Baronesa, para fazê-la achar que teve seus dálmatas transformados em casaco, essa cena existe só como uma piscadela pra 101 Dalmatians. Aquele filme em que a personagem tentará fazer exatamente esse vestido, mas com dálmata de verdade.

Mas pra quê? Se ela já fez o vestido. Ela vai tentar fazer outro casaco igual ao que ela já fez? Que raios de estilista da haute cuture repete o casaco?

Essa piscadela não foi, na verdade, uma contradição?

O que me faz chegar ao ponto que eu mais quero levantar.

E se Cruella fosse independente de 101 Dalmatians?

Sempre que o filme Cruella menciona a existência de 101 Dalmatians o filme causa uma estranheza, pois estamos vendo uma personagem que nunca cometeria nenhuma das atrocidades que ela cometeu no filme caso tivesse a chance.

E esse contraste não é bom pro filme.

O filme poderia ser a origem de Cruella como a conhecemos. Não muito focado em ser prequel direta de nenhuma das versões, para termos alguma liberdade (especialmente a liberdade de poder fazer a história se passar nos anos 1970), mas que ainda buscasse ser uma origem de Cruella e nos mostrar o que aconteceu para ela se tornar uma pessoa que mata cachorros para fazer casacos como se não fosse nada.

Tipo Rise of the Planet of the Apes foi.

Ou o filme poderia ser uma releitura radical da personagem, que quer dar um take novo para ela, usando o personagem para entrarmos em outro território. E sendo a história da ascensão de uma gigante do mundo da moda por métodos não-convencionais. Que estava despreocupada em se passar no mesmo universo de 101 Dalmatians.

Que nem Red Son foi.

O filme Cruella não foi nenhum dos dois. Ele escolheu um híbrido, em que ele ressignificou a personagem, como um símbolo de não-conformidade e rebeldia em um mundo careta e formal como o mundo da moda. Anulou o aspecto de inimiga de animais da personagem, pois tornaria ela uma pessoa problemática, e nessa releitura ela não é mais. E aí bagunçou tudo gritando “mas isso daqui se passa no mesmo universo de 101 Dalmatians, e estamos em uma prequel direta da história original”.

Chegando ao ponto de explicar que Roger compôs a música sobre Cruella baseado no rancor que ele tem, de achar que foi demitido por culpa da Cruella.

O que não funciona, por dois motivos. O primeiro é que Roger conviveu muito de perto com uma pessoa muito mais maligna que Cruella e que tratava Roger muito pior. Então ele descrever uma mulher que fez meia dúzia de vandalismos urbanos como “vampira”, “fera desumana”, “uma aranha esperando para matar”, é muito difícil de acreditar, especialmente quando isso deixa implícito que Roger está tomando o lado de uma mulher que, essa sim, merece todos esses adjetivos.

O segundo ponto é que, no fim do filme, os dálmatas de Cruella dão filhotes, e Cruella dá um dos filhotes de presente pra Roger. E esse filhote é Pongo, o melhor amigo de Roger. Então como que eles não ficaram amigos depois do incidente todo, se ela deu pra ele seu melhor amigo?

É nessas conexões que o filme deixa tudo estranho.

E aí vocês pensam, eu queria que o filme conectasse melhor então? Reescrevesse a cena para justificar melhor a raiva que Roger tem de Cruella?

Não! Eu queria que o filme não se conectasse! Tira o Roger do filme, ele não precisa existir nesse mundo.

TEM QUE ACABAR O CÂNON

Quer fazer um filme sobre uma mulher com um lado selvagem fazendo uma distorção divertida de The Devil Wears Prada? Ótimo, sou a favor, mas pelo amor de Deus, larga a mão do cânon.

Porque ele só está atrapalhando.

Falaram muito da cena em que os dálmatas matam a mãe da Cruella.

E pouco de como a expulsão dela da escola (e ela ter sido uma criança sem educação formal), foi simbolizada por várias bolinhas pretas no fundo branco, que eram os carimbos das manchas negras em seus registros escolares. Eles deliberadamente pareciam manchas de dálmata, e de certa forma foram eles que fizeram a mãe adotiva de Cruella ir até o castelo onde ela morreria.

Como se o filme o tempo inteiro quisesse nos fazer achar que essas manchas de dálmata sempre destruíram a vida dela… e eu achava que ela queria tanto o vestido porque achava a estética dos dálmatas bonita.

É como se o filme quisesse falar que a conexão da Cruella com os dálmatas era além de alguém que queria vestir algo que ela achou bonito, e não teve empatia com quem ela machucasse no processo.

E eu quero mencionar novamente o ponto da relação de Cruella com Jasper e Horace.

Nos filmes tanto de 1961 quanto de 1996, a relação de Cruella com os dois é abusiva, a de uma chefe autoritária perdendo a paciência e tendo ataques de raiva com seus capangas de competência questionável. Em Cruella, por outro lado, Cruella, Jasper e Horace são família, cresceram juntos, só os três, um cuidando do outro sempre que precisam.

E em Cruella a gente vê a relação de Cruella com os dois ficar mais agressiva. Com Cruella ficando mais mandona, menos grata e tendo menos paciência com os dois, conforme ela solta as trevas dentro de si e resolve ser Cruella em vez de Estella.

E isso é muito reforçado pelo fato dela agradecer ou não. Mesmo que ela odiasse a Baronesa, quando ela estava na presença da Baronesa ela sempre agradecia a qualquer coisa, mesmo que a Baronesa odiasse ouvi-la agradecendo. Pois quando ela estava com a Baronesa ela estava disfarçada de Estella, e a Estella sempre agradece.

Mas com Jasper e Horace ela estava enfim sendo ela mesma, sendo Cruella, e a Cruella nunca agradece.

Enfim, com isso o filme te leva a crer que você está vendo o nascimento da dinâmica deles no cânon e está vendo como que a relação deles chegou ao ponto em que chegou no filme.

Se não fosse o fato de Cruella perceber que foi longe demais com duas pessoas que ela ama. Feito ela pedir desculpas, e estabelecido que mesmo depois desse episódio de grosseria, eles são família. E dessa cena em diante ela nunca mais foi abusiva com os dois.

O que serviu pra reforçar que a dinâmica dela com Jasper e Horace não é a de uma patroa escrota. É a de família. O que obviamente não é a dinâmica dela com os personagens na memória do espectador. E isso na real te distrai, te faz achar que você tá assistindo a origem de algo que não existe, e rouba teu foco do filme.

Pois é difícil apreciar o amor-de-amizade genuíno que Cruella e Jasper têm como dois órfãos de rua que cuidaram um do outro a vida inteira, se a gente vê tudo sobre a perspectiva de quem está esperando Cruella virar alguém que dá uns tapas nele de graça.

Que nem eu vi o filme inteiro esperando a Cruella trair o Buddy.

Enfim, então finalizando:

Eu acho que hoje em dia a gente vive uma overdose de conexões no cinema.

Todo filme blockbuster que sai tem que ter conexão. Ele tem que ser a prequela, a sequência, o reboot, se passar no mesmo universo que outro filme, ou ser o reboot-que-é-sequência-mas-é-sequênca-só-dos-dois-primeiros-filmes-e-reboota-os-outros. O que mostra que a arte de rebootar é um espectro diverso em que diversos tipos únicos de reboot existem.

E quando não é nada disso, tem que chegar prometendo franquia. Prometendo que é dele que vão sair sequências, prequelas e reboots.

E é isso. Nenhum filme tem mais o direito de existir sozinho. Todos os filmes precisam ter pelo menos 15% do seu tempo de tela dando uma piscadela pros espectadores que só estão ali pois são fãs de outro filme.

Tá um caos isso.

Não tem um filme que não sai sem alguém querendo propor um grande crossover por trás disso.

E não importa qual a proposta do filme, qualquer filme com direito a múltiplas propriedades intelectuais se divulga primariamente mostrando essas conexões, mais que mostrando a própria história. É essa a cara do cinema atual, em que o interesse do filme está em com quantos filmes ele está conectando.

Porque a Era do Reboot pega pesado. Eu não acho que isso tudo é inteiramente diretores e roteiristas com a cabeça no lugar errado. Deve existir muita pressão para criar esse tipo de conexão e expectativa.

A personagem da Cruella quer ser subversiva? Quer ser punk? Quer ser rebelde? Quer se afirmar? Em vez de usar um casaco de pele de dálmata falso, muito mais subversivo, muito mais contra o status quo seria não ter um único dálmata no filme inteiro. Nenhum mesmo, sequer a menção.

Faz um filme sem Roger, sem Anitta, nem dálmata, e sem piscadelas pros fãs. Por que isso sim seria um statement e combinaria com o que a personagem gosta de fazer.

Porque se ela não está interessada em ser a Cruella que a gente conhece, otimo, mas então esteja interessada em parar de abraçar o cânon.

Faz um universo alternativo da Cruella e foda-se!

Até porque o ponto positivo do filme é justamente o que reinventa a personagem.

Eu não tava com muita vontade de realmente ver ela achar uma justificativa racional para esfolar filhotinho. E não acho que o filme teria sido muito bom se tivesse rolado isso.

Mas nossa, o filme seria tão melhor se não tivesse nenhuma cena com aqueles dálmatas.

E não é só em Cruella não.

Em Joker, filme com o qual Cruella foi comparado várias vezes, a necessidade de conectar a origem do personagem ao Bruce Wayne também desagradou.

O que gerou várias perguntas sobre o Joker ser mais de 20 anos mais velho que o Batman.

E é isso. O filme não tem que ser bem encaixadinho com nada, ele só tem que ser consistente e interessante.

E quando você quer fazer ele ser na verdade só uma parcela de uma história maior, a história maior é que tem que ser consistente e interessante.

E às vezes as conexões não estão deixando nada consistente. Nem nada interessante. Estão te distraindo, te convidando a fazer perguntas tentando encaixar algo que não dá pra encaixar, em vez de apreciar uma visão alternativa.

O cânon só está atrapalhando.

Muita gente suspeita que Cruella pode começar uma nova leva de filmes da Disney contando a perspectiva dos vilões, meio que seguindo a onda de Malleficient. Por outro lado a continuação Cruella 2 já foi confirmada.

E eu tenho medo que esse Cruella 2 seja pra fazer justamente o que esse filme não fez. Fazer ela virar a chave e se tornar a personificação da crueldade animal pelo que ela é famosa. Começar a bater em Jasper e Horace. E achar algum motivo para sumir com o Artie e justificar a não existência do personagem nos filmes cânon. Justamente para poder enfim encaixar esse filme no tão-valioso cânon. E calar a boca de todo mundo que falou “mas esse filme não terminou com a Cruella sendo Cruella”.

Eu espero que, seja lá qual for o caminho tomado, que a Disney tenha noção do que esse filme é na prática, pois a recepção de Cruella está dividida de uma maneira tão consistente quanto o cabelo da protagonista. Se você olhar na internet, dá para ver quais são as características do filme que quem gostou do filme apreciou.

E dá pra ver qual foi a cena que fez o filme ser motivo de chacota.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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