Olá, faz tempo né? Eu sei que vocês já devem estar acostumados de a cada intervalo longo sem textos eu vir aqui justificar a ausência. Mas não vou mentir não, que no meio dessa pândemia foi difícil deixar o pânico de lado e juntar energia mental pra escrever. Estou faz muito tempo tentando e tentando montar um texto sobre o Once Upon a Time in Hollywood, e tá difícil de sair. Mas espero que saia em breve, pois eu prometi no twitter que faria, e eu levo a sério minhas promessas, apesar dos prazos quebrados. Mas os tempos estão derrubando todo mundo.
Pois bem, mas eu consegui um surto de motivação pra escrever agora, porque o Dia das Mães passou e me deixou pensando em família, e família que deixou com vontade de falar sobre um mangá que eu gosto muito e já tem muito tempo que eu queria falar dele aqui no Dentro da Chaminé. Domestic na Kanojo (Namorada Doméstica), ou DomeKano, como eu vou resumir ao longo do texto inteiro.
DomeKano é um mangá que desde que eu comecei a ler, o que faz pouco mais de um ano, se tornou uma das minhas leituras semanais favoritas, empatando com One Piece no quanto eu semanalmente fico ansioso pelo próximo capítulo, mas sempre fiquei inseguro quanto ao tom com o qual eu queria falar dele, sem ter certeza de como trazê-lo. Pois é um mangá que eu gosto de verdade, sem nenhuma dose de irônia ou meme. Mas a premissa básica dele é essencialmente aquele meme do japão colocando premissa zoada em mangás.
É essencialmente um mangá sobre um cara namorando a irmã. Vamos tirar isso logo do caminho sem dar a volta nem florear, é um mangá sobre incesto. E tá cheio de fã no reddit fingindo que não, pois não são irmãos biológicos, e portanto é de boa (but not really), mas acho importante não ficarmos na negação. Então vamos tirar esse band-aid de uma vez, pra chegar mais rápido onde eu quero chegar.
Afinal, eu já falei de The Lion King aqui, já falei de Arrested Development já falei de Game of Thrones, então posso falar de mais uma obra com incesto. O grande problema é que aqui eu quero basicamente falar sobre família. E o irônico é, enquanto eu lia eu enquanto leitor fiquei genuinamente surpreso de ver que o mangá realmente tinha coisas pra falar sobre laços familiares, e isso foi uma surpresa imensa. E eu não sinto que eu tinha que ser, afinal de contas, quando eu paro pra pensar, toda história de incesto deveria ser primariamente uma história sobre família. Não necessariamente uma saudável, mas família devia definitivamente estar no centro do que está acontecendo.
E o motivo pelo qual eu deixei de esperar isso foram os anos da mídia japonesa, não só transformando incesto em um fetiche para filhos únicos compensarem sua falta de aptidão de conhecer gente do sexo oposto, desejando que tivessem pessoas do sexo oposto dentro da própria casa com quem eles já tem contato. Como sendo exatamente isso, obras em que a questão familiar entre os personagens existe unicamente para forçar eles a viverem juntos e qualquer outra questão é ignorada, pois o principal sentimento que essas obras querem provocar são ereções e escapismo.
E é por isso que a gente zoa o Japão. Porque olha essa tragédia na indústria no entretenimento. O Miyazaki tinha razão.
E isso virou essencialmente seu próprio subgênero dentro de mangás, animes e light novels, histórias de irmãos se fetichizando que nos fazem olhar e fazer um enorme desdém pra esse plot-point que é tão antigo quanto Oedipus Rex. Uma tragédia grega excelente.
Pois é. Por isso, quando eu ouvi falar de DomeKano eu tive certeza de que ia ser farinha do exato mesmo saco. E fui imediatamente ler, porque hey, todos nós ficamos morbidamente curiosos quando ouvimos algo muito bizarro. Não me julguem, eu sei que vocês foram ver o filme do Sonic. A gente sabe porque Sharknado faz o lucro que faz, a gente sabe como premissa imbecil funciona.
Então vamos falar um pouco sobre DomeKano.
É a história de um rapaz de dezesseis anos, estudante do colegial chamado Natsuo Fuji, que sonha em ser um escritor. Após anos de luto pela morte da mãe de Natsuo, o pai de Natsuo, Akihito Fuji enfim resolve seguir adiante com a sua vida e casar com uma mulher chamada Tsukiko Tachibana. O problema, é que as duas filhas de Tsukiko, que se tornariam suas irmãs não eram estranhas para o rapaz, nenhuma das duas.
A filha mais velha Hina Tachibana é a professora de inglês de Natsuo, e também a mulher por quem ele esteve apaixonado ao longo do último ano. Diferente do tradicional clichê do aluno apaixonado pela professora, Natsuo gostava de Hina a nível pessoal, eles conversavam todo dia nos intervalos da escola, falavam sobre suas vidas, dividiam segredos e podiam genuinamente ser considerados amigos, Hina inclusive era uma confidente do sonho do Natsuo de se tornar escritor e o incentivava.
A filha mais nova, em contraste, era Rui Tachibana, uma garota que ele tinha conhecido poucos dias antes de seu pai anunciar casamento. Ele conheceu ela em um karaokê, e os dois tiveram um one-night-stand motivado puramente pelo desejo mútuo de perda de virgindade. Pois Natsuo acreditava que se ele não fosse virgem, ele poderia ser visto como um adulto por Hina (não demorou pra ele descobrir que isso não é verdade). Depois disso eles combinaram de não se reencontrar, o que obviamente não aconteceu.
E daí começa um triângulo amoroso de três irmãos e muita tensão sexual, e fanservice, e alguns plots bem estúpidos e tudo aquilo que esperamos desse tipo de mangá.
Indo direto pros spoilers, pois se eu evitar eles eu não posso explicar porque esse desastre de premissa que não parece melhor que nenhum outro mangá/anime/light-novel bizarro de um colegial com tesão pela irmã merece espaço nesse blog. A história rapidamente sai do chove-não-molha que marca muitos mangás de romance. Natsuo entra em relacionamento com as duas (uma de cada vez), sai, retoma, e a história é muito mais sobre a manutenção dos relacionamentos, do que sobre esticar uma confissão de amor pelo maior tempo possível, como um romance shounen normal faria.
Em vez de arrastar o triângulo amoroso em mal-entendidos e confusões guiando as tensões sexuais nunca assumidas deles por inúmeros capítulos, são os bem-entendidos, que geram o drama. Porque isso é um dramalhão que mais parece novela. Um excelente exemplo disso é quando Natsuo começa a namorar Hina em segredo, e Hina se muda pro seu próprio apartamento. Natsuo começa a mentir pra Rui motivos pra estar fora de casa. Quando Rui descobre que Natsuo e Hina estavam tendo um caso, e finalmente entende a origem das mentiras acumuladas de Natsuo, ela tenta ficar brava, mas no fundo ela só fica muito triste pois ela entende o quanto não havia nada que ela podia fazer naquela situação. E isso é importante, o ciclo do mangá é sempre o dos sentimentos dos personagens aflorando, convencendo-os a agir, a ação gera consequência, as consequências afloram sentimentos que convencem o personagem a agir…. E por aí vai. Muito menos parecido com uma comédia romântica como Gotoubun no Hanayome, e mais parecido com…. O tipo de cena que veríamos em uma novela mesmo.
Mas eu não vim aqui defender a parte romântica, por mais que eu adore ela, e apesar do tabu, acho incrivelmente defensável, eu vim defender a parte familiar…. Ou seja, eu vim falar de como é que esse mangá retrata os personagens como família.
Pra começar, reconhecendo que eles são uma. Afinal, o que esses três estão fazendo só é um tabu por causa disso. Tendo começado a morar juntos só no fim da adolescência, era a coisa mais fácil do mundo pra eles não se considerarem irmãos de verdade. Mais que fácil, seria conveniente pra eles não se imaginarem como nada além de colegas de quarto para racionalizar as suas intenções românticas.
Afinal de contas a situação deles na prática não é tão diferente da de Ed, Al e Winry de Fullmetal Alchemist. Que moraram juntos na mesma casa sob a guarda da mesma guardiã legal, depois da morte da mãe. E apesar de terem sido parte da mesma unidade familiar durante o crescimento, e de terem o mesmo lar e a mesma família, Ed e Winry nunca usaram nada sequer parecido da palavra “irmãos” pra se referirem entre si. Pararam no “Amigos de Infância.” o que é justíssimo, eles nunca se viram assim, e conveniente pra autora, pois eles eram claramente um casal romântico.
Não é o caso de Natsuo, Hina e Rui que abraçaram essa palavra com força. A insistência dos três em usar a terminologia “irmãos” entre eles é contrastada no próprio mangá pela presença de Hibiki. A enteada do pai de Rui e de Hina, que oscila em chamar a Rui de irmã, mesmo passando pela mesma tecnicalidade que o Natsuo.
Claro, que uma vez que Natsuo eventualmente namorou as duas, em diversos momentos, a falta de consanguinidade deles é mencionada pra racionalizar o incesto. Mas eu acho importante frisar que quando Rui fala “Não somos irmão de sangue.” ou Hina fala “Ele é meu irmão de criação.” ou Natsuo fala “Tecnicamente isso não é ilegal.” nenhum deles está falando “Não somos irmãos de verdade.” e ao longo de quase 30 volumes, não tem uma única cena deles negando parentesco.
O único momento em que o parentesco deles foi negado, foi pelo personagem Kengo Tanabe, um misógino, stalker, psicopata, inimigo da família e deliberadamente construído pra ser o personagem mais odiável do mangá inteiro.
Em resumo, apesar deles não terem laços sanguíneos, em vez dessa ausência de consanguinidade, ser usada para justificar que eles não são irmãos de verdade e aliviar, o que eles estão fazendo. Não é aliviado, e o assunto é tratado como o tabu que é (apesar de legalizado), justamente pela insistência deles de se verem como uma família.
Mas mais que isso, o que fixa esse mangá como um mangá que realmente fala sobre família, e o que me fez querer escrever esse texto em primeiro lugar, é que a relação desses três com seus pais, tanto biológicos quanto adotivos é reforçada constantemente. Em especial nesse momento aqui, de verdade eu resolvi escrever esse texto só porque eu queria falar desse grande momento, que não tem nada a ver com a trama de romance.
Em determinado momento, Rui reencontra seu pai biológico, que se divorciou da esposa por adultério e desapareceu da vida das filhas. Rui descobre que ele ia abrir um restaurante na cidade, e querendo se profissionalizar como cozinheira, usa essa conexão para trabalhar no restaurante dele e aprender a ser cozinheira enquanto profissão.
Porém como o pai de Rui não se divorciou da mãe de Rui em termos amistosos. Muito pelo contrário, a decisão dela de trabalhar com o pai não foi bem-vista na casa. Ela brigou com a mãe e fugiu de casa, indo morar no restaurante temporariamente enquanto ele não abria. Sendo visitada lá por Natsuo todos os dias, preocupado com como a irmã estava lidando com sua fuga de casa.
Quando o pai de Natsuo descobre que ele tem visitado a irmã diariamente, ele insiste em ir até ela, por querer conversar com o pai dela.
A expectativa era a de que Akihito fosse ter uma briga de ego masculino com o pai da Rui, e querer reforçar a si mesmo como o guardião legal dela, trazendo ela de volta pra casa. E a cena é toda construída para termos essa sensação pois Akihito estava visivelmente alterado.
E o que temos é essa cena aqui:
O que me surpreende nessa cena, é que além da quebra de expectativa, que honestamente era até fácil de presumir que rolaria. É uma série de quebra de clichês muito importantes em como a ficção no geral retrata o contraste entre família biológica e família-não-biológica.
Que como já falei aqui antes, é um assunto importante pra mim, que mexe muito comigo.
A começar pelo fato básico, Rui ao ver a preocupação de Akihito com ela e o carinho que ele tem por ela, e o quanto ela magoou ele fugindo de casa, aceita esse carinho e começa a chamar ele de pai. Isso não parece muito fora da caixa, mas é, justamente porque o pai biológico da Rui estava assistindo, e sorri quando vê a cena. A Rui entende que Akihito é pai dela, por reconhecer que ela tem um laço de carinho com Akihito que ela estava negligenciando, mas que ela valoriza. E isso não tem nada a ver com o pai biológico dela.
Na ficção, normalmente o pai adotivo tem seu valor medido em contraste direto ao valor do pai biológico. Então histórias que enfatizam o valor de uma figura paterna amorosa e saudável, são colocados em contraste direto com um pai biológico que é um amontoado de merda.
Por outro lado, histórias sobre famílias adotivas abusivas costumam vir acompanhadas de uma valorização enorme da figura do pai biológico. Como o verdadeiro pai.
As duas abordagens no fundo buscam estabelecer a exata mesma coisa, uma figura que possa ser considerada “O verdadeiro pai.” do personagem. Esse um personagem que é o único digno de sentar nesse trono. E apesar de eu elogiar muito a fuga desse trope, o uso dele está longe de ser um defeito. E não tenho críticas reais a como esse fator foi usado nos exemplos acima, exceto Harry Potter. Não é ruim que seja assim, é só que é ótimo quando alguém dá o passo além.
Que é o motivo pelo qual todo dia dos pais a gente faz um monte de meme sobre como o Piccolo é o “verdadeiro pai do Gohan”, e o quanto o Goku é um merda. Mesmo que o Piccolo e o Goku nunca tenham genuinamente disputado o afeto do Gohan, e parecem bem felizes de estarem os dois na vida dele.
E é nessa tendência de sempre medir o pai verdadeiro como o “pai melhor”, que uns filhos da puta tóxicos e problemáticos como o Yondu conseguem ser retratados como exemplos positivos de “pai é quem cria” na cultura pop.
Porque a verdade é: entre um pai biológico escroto e um adotivo escroto, nenhum dos dois é o verdadeiro pai! A ausência de um verdadeiro pai é uma opção.
A subversão é que no caso da Rui, o momento em que ela reconhece Akihito como seu novo pai, não só não deriva de nenhuma imagem negativa de seu pai biológico, se recusando a fazer o contraste entre o “pai bom” e o “pai ruim”, a real subversão é que justamente, tudo isso começou quando ela se reencontrou com o pai biológico de quem ela esteve afastada por anos.
Ou seja, esse arco é sobre Rui se reconectando com seu pai biológico, e colocando ele de volta na sua vida depois de anos de divórcio em que a ausência dele abalou ela. É sobre ela perdoando o pai pelas circunstâncias do divórcio e admitindo que a saudade dela por ele é maior que a mágoa, e que ela está disposta a brigar com a mãe pra recolocar o pai na vida. Não deixando o direito de sua mãe de manter a mágoa se tornar um obstáculo no direito dela, de valorizar as memórias dela com ele.
E em meio desse turbilhão de emoções que foi perdoar seu pai biológico, brigar com a mãe, e recontextualizar um monte de memórias, que ela percebeu que Akihito havia transcendido o papel de homem que mora na sua casa, e havia se tornado um pai pra ela.
Ou seja, é um arco em que a Rui começou sem nenhum pai, e terminou com dois. Não existe a ideia do pai verdadeiro. A ausência do pai biológico de Rui, não tornou o Akihito o verdadeiro. O amor de Akihito foi o que tornou. Mas o amor do pai biológico o tornou o verdadeiro também. E por isso que eu acho fenomenal, que no fim da cena, ela se refira aos dois personagens como “pai”, pois não é um título que precisa pertencer a somente um homem.
E desculpem o rancor, mas caralho, como eu queria que o James Gunn fosse capaz de entender esse conceito, antes de fazer aquela cena ridícula do “He may be your father, but he wasn’t your daddy.”.
Acho que a lição que se tira disso, é a de que família não é uma competição. E laços familiares, não se baseiam em substituição. E essa perspectiva é uma da qual não se fala o suficiente na hora de se retratar famílias adotivas. Inclusive, é muito comum nas séries o quão saudável e funcional uma família misturada é ser retratada justamente pela completa falta de menção aos pais biológicos que ficaram de fora da família.
E essa falta de competição é vista justamente na personagem Tsukiko, a mãe de Rui e Hina e a madrasta de Natsuo. Diferente do pai de Rui e Hina que se divorciou. A mãe de Natsuo faleceu. E Tsukiko, mais que respeitar a ideia de que existiu uma mulher antes dela, ela não tem a menor pretensão de substituir uma mulher morta ou ciúmes de saber que a memória dela ainda existe na família e vai existir pra sempre. Ela não se vê como uma substituta, e sim como um novo amor que surgiu, e que de nenhuma maneira é um amor fraco.
Um dos meus capítulos favoritos, é justamente o primeiro dia das mães que eles passam juntos. Em que Rui e Hina descobrem que Natsuo iria passar só a segunda metade do dia com Tsukiko, a primeira metade ele ia passar no túmulo de sua mãe, falando com ela.
Ao descobrir isso, as duas resolvem, que vão fazer o mesmo, e se juntam pra acompanhar Natsuo, deixar flores também no túmulo, e por mais que ela não seja a mãe delas, reconhecer que ela é família.
Nada disso enfraquece o laço que Natsuo tem com Tsukiko. Embora, diferente de Rui, Natsuo nunca chega a chamá-la de mãe. Tsukiko explicitamente chama Natsuo de filho ao longo do mangá.
E deixa claro o quanto ama e se importa com ele. Inclusive em vários momentos sendo bem atenciosa em relação ao estado emocional do rapaz, mais que seu pai ou suas irmãs-amantes.
Mais que a valorização da família e dos laços. O mangá também tem foco no quanto os personagens lutam pela manutenção da família que criaram. Ao longo de todo o mangá, de todas as possíveis consequências da relação incestuosa de Natsuo com suas irmãs vindo a tona, sempre foi acentuada como uma das piores, a de que a descoberta desse romance podia fazer Tsukiko e Akihito se divorciarem em resposta e acreditar que seu casamento foi um erro. Dentre todas as pessoas de quem o relacionamento devia ser guardado segredo, os principais sempre foram os pais, pois era ali que estava o maior risco.
Logo no capítulo 2, quando Natsuo e Rui descobriram que seriam irmãos depois de terem tido sexo casual poucos dias antes, antes deles se apaixonarem, Rui fala que pra ela, o desconforto na rotina que vai ser se tornar irmã de um cara que ela pegou não é nada perto de ver a mãe feliz de novo depois de ter sofrido tanto com o divórcio, e que ela não quer tirar isso da mãe por nada. E dali em diante é isso. Se o amor proibido deles custasse o casamento dos pais, não teria valido a pena. E esse é o principal motivo pelo qual isso tudo é mantido em segredo.
Não só isso, como também a série fez com que entendendo que faziam parte do mesmo triângulo amoroso, Hina e Rui tenham as duas feitas um esforço para não deixar essa bagunça imensa que era a vida amorosa deles tirar a conexão de irmãs que elas tinham, e mais que não tirou, restaurou.
No começo do mangá Hina e Rui estavam brigadas. Hina estava tendo um caso com um homem casado, que incomodava Rui pela maneira como ser tratada feita uma amante machucava Hina, e pela imagem que Rui tinha de homens que traem a esposa, como seu próprio pai, que ela acreditava que tinha quebrado a família com sua infidelidade (isso anos antes dela fazer as pazes com o pai). Hina por outro lado, incômoda de ter Rui palpitando em seus romances, afastou a irmã mais nova, reforçando que ela não era adulta pra dar pitaco em problemas de adultos.
O que engatilhou uma necessidade de ser vista como uma adulta, para poder estar em pé de igualdade com Hina. Sua necessidade de se ver como uma igual à irmã mais velha, a motivou a perder a virgindade com um completo estranho no karaokê, que foi Natsuo e engatilhou os eventos do primeiro capítulo. Então desde o primeiro capítulo, estamos na verdade vendo as consequências de uma relação, mais do que fria entre as irmãs…. Desigual.
A diferença de idade das duas deixou elas mais distantes que nunca. Rui se sentia impotente de poder ajudar ou aconselhar sua irmã mais velha que estava chorando escondida no quarto e mentindo que tava bem. E Hina estava se sentindo soterrada pela vida adulta, invejando Rui que tinha mais liberdade de fazer o que queria sem ter que pensar em ser responsável antes.
Podemos pensar que o timing estaria péssimo pra se apaixonarem pelo mesmo cara, e estava. Quando Hina rejeitou os avanços de Natsuo, contendo seus desejos pra fazer a coisa certa, e poucos capítulos depois vê Natsuo e Rui se beijando escondidos, ela surta, e decide que não queria mais morar com a Rui, para não ter que lidar com a inveja que sentia da irmã. E joga na cara de Rui o quão amoral é a situação toda.
Porém com o tempo, as discussões delas vão gradativamente se tornando mais e mais amigáveis. Elas se reencontram uma excursão da escola na praia. Onde Rui perdoa Hina por pegar o Natsuo em segredo depois de abertamente julgá-la pela atração. E Rui diz que não tem a menor intenção de separar os dois, mesmo que ela tenha feito tudo em seu poder pra separar Hina de seu namorado anterior.
Elas tem outra conversa a sós importante em outra excursão da escola. Dessa vez Hina não foi na excursão como professora. Foi em uma ilhazinha onde Hina estava morando depois de ser transferida da escola por ter tido um caso com aluno descoberto. Nessa excursão, Hina rejeita a possibilidade de reatar seu relacionamento com Natsuo no futuro e quebra o coração dele de vez. O que é questionado por Rui, que não entende porque Hina fez isso. Hina queria que Natsuo tocasse a vida pois achou que um relacionamento tabu seria um fardo em sua carreira, e que Rui entenderia isso melhor no futuro, enquanto Rui discorda e afirma que se fosse ela, ela nunca faria isso (e capítulos depois é revelado que ela definitivamente faria sim, alguns anos depois dessa conversa).
Então quando Hina retorna pra casa, depois de seu tempo no auto-exílio, Rui tem que explicar pra irmã que durante a ausência dela, Natsuo começou a namorá-la. A explicação foi marcada por terminar com ambas chorando em seus respectivos quartos, sozinhas, Rui chorando por saber exatamente como a irmã se sente e o quão pesada foi a informação.
Depois, quando as duas já estavam solteiras de novo, e Rui estava morando em Nova Iorque. Hina vai até os Estados Unidos ver a irmã. E lá elas conversam, sobre ambas quererem reatar com Natsuo, e sobre como uma não vai ter ressentimento nenhum da outra não importa o que aconteça. O mais mágico é que nessa cena, auxiliado pelo tempo que passou ao longo da série e o envelhecimento das personagens. As duas estão finalmente na posição que Rui almejou desde o começo. A de se verem como iguais. Hina já não representava um estágio da vida que Rui queria alcançar a todo custo. E Rui já não representava um estágio da vida que Hina invejava, as duas estavam em pé de igualdade, e aparentavam nunca estar tão próximas. Fortalecendo seus laços, falando sobre como elas gostam da cara que o Natsuo faz quando dorme.
Cinco grandes conversas sobre o triângulo que elas tiveram. A primeira em um tom agressivo. A segunda em um tom de perdão. A terceira tentando, mas falhando em achar um entendimento mútuo. A quarta empática com as duas melancólicas por verem o quanto estavam no mesmo barco. E a quinta, amistosa, onde esse assunto se torna um grande interesse comum sobre o qual elas podem enfim falar. Progressivamente cada vez que elas se falavam elas estava mais de boa com o assunto, e entre si, e a frieza que era a relação das duas no começo, jamais voltou.
Em resumo, apesar desse enorme elemento que deveria, estar destruindo a família, a família de DomeKano é surpreendentemente normal, funcional e amorosa…. Normal na medida do possível.
Enfim, quando não está sendo deliberadamente para estimular fantasias de otakus, incesto costuma ser usado na ficção primariamente com três funções. A primeira é para servir de plot-twist trágico, uma revelação que enoja os participantes do ato de descobrir que fizeram algo imoral. O que normalmente resulta em uma auto-mutilação, ou se forem Luke e Leia, um mero pacto implícito de nunca falar a respeito.
A segunda é para ser praticado por personagens vilanescos, justamente para enfatizar a completa falta de conexão com qualquer valor. E o quão nada é sagrado para um personagem tão amoral.
A terceira, e mais importante é pra ser a marca de uma família desfuncional. Onde o incesto é só mais um sintoma da desfuncionalidade, que vem acompanhado de mentiras, gente manipuladora, parentes empurrando fardos entre si, mentiras, traições e rancores…..
Justamente por isso que DomeKano não ter transformado os Fuji-Tachibana nos Lannisters, é notável. Mais do que uma família funcional. Eles acabam sendo um dos relatos mais saudáveis que eu já vi sobre a funcionalidade de uma família com filhos de outros casamentos.
Evitando as eternas picuinhas de irmãos de criação que se odeiam.
Não idealizando essa família como “indistinguível de uma família normal”, fingindo que nenhum dos personagens tinha família antes do casamento.
Evidenciando que os pais amam seus enteados e enteadas tanto quanto seus filhos e filhas biológicos, sem hierarquia.
Uma força que nem mesmo os filhos fazendo a merda das merdas conseguiu destruir. E se a questão do triângulo amoroso faz o fandom brigar sobre se querem que o Natsuo fique com a Rui ou a Hina no final, esse debate pra mim é bem menor do que a torcida de “independente de qual das duas ganhar, quero que no final os cinco consigam se sentar na mesa de refeições sorrindo todo mundo feliz por estar ali.”… Pois essa é a imagem que vai indicar que todos os capítulos de dramalhão e menina chorando vão ter valido a pena. O final só vai ser feliz, se no final a vida amorosa do Natsuo não tiver tirado da família a capacidade de ser uma família…. e vou ser sincero, eventos recentes no mangá me fazem questionar se eu vou ver de verdade um final feliz.
Acabando daqui a menos de um mês, Domestic na Kanojo, se tornou numa improvável fonte, um mangá muito mais maduro do que qualquer um podia esperar (mas não maduro o suficiente para evitar certos capítulos estúpidos, sou obrigado a ser sincero, eles aparecem e eles são estúpidos), que pra além de romance, e de família, explora assuntos como xenofobia, luto, estigmatização, e o mais importante, sobre em que termos você pensa no passado na hora de tocar o futuro pra frente. Seja esse passado um relacionamento incestuoso, envolvimento com a máfia, dependência química, tentativa de suicídio, culpa por tragédias pessoais, ou até coisas mais leve que tudo isso como brigas, e exes, ou mudanças de carreira. Pela lente de como se toca a vida depois de tirá-las dos trilhos, e de como eventos importantes na vida de alguém sempre vem acompanhados de memórias boas e ruins, vários assuntos são passados, alguns que eu não esperaria ler fora de um mangá seinen.
E que por mim devia ficar como exemplo, de como retratar a relação padrasto-esteado em ficção. Mas infelizmente, não é pelo laço entre Rui e Akihito que esse mangá vai ser lembrado. Mas tudo bem, posso viver com isso.