A Series of Unfortunate Events: Os adultos competentes e os adultos inúteis.

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Alerta de Spoiler: Esse texto contém Spoilers para quem ainda não viu a segunda temporada da série, porém em um repetido esforço de incentivar a audiência da série, da qual eu gosto muito, esse texto não contém spoilers dos livros, embora pudesse conter, ajudaria meu argumento, mas vou escolher omiti-los. Assim aqueles que não leram os livros podem ficar tranquilos que não vou sacanear a experiência da terceira temporada. Porém eu vou comparar série com livro, então se você quer ler os livros e não quer saber as diferenças entre livro e série, então o texto não é seguro.

Season2

Com isso resolvido, bem-vindos. Recentemente estreou a segunda temporada de A Series of Unfortunate Events, no Netflix, que adapta o que é certamente minha série de livros infanto-juvenis favorita (embora eu ache que hoje ela seja melhor rotulada como Young Adult, para ficar na mesma sessão da livraria que seus semelhantes, essas coisas variam com contexto). Então eu assisti a série e logo levei um susto ao ver que da mesma forma que na primeira temporada as aventuras das crianças as vezes eram interrompidas para acompanharmos a jornada do casal Quagmire de volta para casa, na segunda temporada os personagens que acompanhamos são Jacques Snicket e Olivia Caliban, em uma subtrama que mostra como Olivia aprendeu a direcionar seus conhecimentos de bibliotecária para fazer do mundo um lugar melhor, se unindo a uma organização nobre e ajudando órfãos encurralados pela perfídia. E isso me chamou a atenção, pois Olivia Caliban é uma das minhas personagens preferidas dos livros, e uma das mais interessantes e complexas, e a sua jornada na série contradisse muito do que me fazia achá-la uma personagem tão cativante.

OliviaJacquesTaxi
Jacques Snicket e Olivia Caliban

Ah sim, esse textos será sobre isso. Sobre pegar uma adaptação audiovisual de uma série de livros que aumentou a própria popularidade e visibilidade graças a adaptação e ficar apontando as diferenças entre obra original e adaptação.

KlausLendo

Então já quero logo acalmá-los de que não é um texto para falar que o livro é melhor, até porque gosto muito da série. No geral pensar em adaptações e suas mudanças são elementos que me interessam bastante. Já escrevi aqui no blog sobre o que eu considero mudanças válidas e aceitáveis na hora de adaptar e do que eu considero mudanças que distorcem e modificam o valor da série várias vezes. Falando da Família Addams, falando do clássico literário And Then There Were None, e falando do remake de Beauty and the Beast, e ainda vou falar muito ao longo desse blog, pois é um tema que me fascina. E no caso de A Series of Unfortunate Events, eu vejo tanto exemplos de mudanças positivas que melhoram a experiência narrativa; quanto mudanças que eu sinto que eram meramente necessárias, pois com a transição de mídias, certos aspectos simplesmente ficariam muito toscos em tela. Mas eu vejo também algumas mudanças que me soam como contraditórias quanto aos temas que os livros trabalham, não é como se a adaptação perfeita tivesse sido feita, o que é obvio que não seria, até porque a perfeição é relativa.

HenchpersonHarveyDent
As vezes adaptar significa fazer uma escolha pragmática que obviamente não funciona. Por exemplo, no caso do filme de 2004, adaptar o que é descrito como androginia, ou melhor, a incapacidade dos Baudelaire de saber se um dos capangas de Olaf era homem ou mulher. E ao invés de chamar um ator ou atriz com traços andróginos em seu visual, fizeram meramente um Harvey Dent entre os gêneros em um visual que não faz o menor sentido. Um claro caso de escolha idiota que não funciona.

O lance de adaptar, é que pegamos uma obra que está pronta, e foi escrita por um autor com ideias, visões de mundo, enviesamento político, ideais do que é correto e incorreto na sociedade, e isso tudo acaba indo consciente ou inconscientemente para a obra. Aí uma pessoa que não necessariamente tem nada a ver com isso, vai ler a obra, tirar suas próprias conclusões subjetivas, e tentar recontar a obra reforçando suas conclusões subjetivas. Que podem ser exatamente o que estava no livro, ou podem ser algo levemente diferente do que estava no livro, mas necessário de ser dito no contexto em que o filme é lançado, gerando um debate relevante. Ou pode ser uma pilha de lixo. Independente disso, o filme vai ser visto por um leitor que também tirou as próprias conclusões subjetivas e não teve a suas interpretações e pensamentos que lhe ajudaram a adorar o livro em primeiro lugar reforçados no filme, o que gera uma insatisfação.

E essa insatisfação pode ser reforçada pelo abismo hierárquico entre as duas partes, que podem fazer parecer simplório que ambas as partes sejam meramente seres humanos com ideias interpretando um conteúdo literário, porém uma das partes está recebendo dinheiro para poder exercer autoridade em relação a como um número grande de pessoas vão ter sua primeira impressão dessa obra, enquanto a outra parte as vezes tem uma conta no twitter e é somente um fã. Pois bem, isso as vezes me deixa meio puto. Sei lá, no meio de 2018 eu vejo um anime que continua um clássico dos anos 80/90 e visivelmente não entende lhufas sobre o anime original e penso comigo mesmo “porque esses animais têm permissão para distorcer uma obra tão fundamental para a sociedade, pisando no trabalho original, estando em posição de autoridade na obra perante a mim que só posso no máximo falar mal de Dragon Ball Super e daquele final horroroso em meu blog.” Pois é, meio frustrante.

17
Era um dos meus personagens favoritos em Dragon Ball. Aparentemente era um dos favoritos do pessoal que fez o anime. Mas é muito claro que o que eu gostava no 17 e o que o pessoal de Dragon Ball Super gosta é extremamente diferente.

Mas aí eu vejo a série de A Series of Unfortunate Events, e vejo que Daniel Handler em pessoa está cuidando da adaptação e sou pego em posição de desvantagem. Porra, aí não é um aleatório zoando os livros, é o próprio autor. Sequer posso vir ao blog falar “esse cara manja merda nenhuma dos livros, quem manja sou eu”, pra aliviar minha frustração, porque o cara obviamente manja mais que eu.

(trivia: se a obra em questão for Star Wars, você que está lendo pode ficar tranquilo que nada que eu disse aqui se aplica. Qualquer um entende mais de Star Wars que o George Lucas).

Pois é, e aí fiquei eu ao fim da segunda temporada, admirado com como o último episódio em particular foi muito bom, e foi algo que eu queria ver na mídia audiovisual faz muito tempo, mas ao mesmo tempo com uma pulguinha atrás da orelha me falando “mas que porra foi aquela com a Olivia?” e ela falava muito alto e aí vim escrever esse texto, pra falar sobre essa mudança.

Cliffhanger
Espero não perder leitores com a revelação de que eu esperei um ano ansioso para ver orfãos serem arremessados de um penhasco em um carrinho de circo. Pode me fazer soar como uma pessoa ruim.

Então vamos falar sobre a Olivia.

A Series of Unfortunate Events é uma série de livros bem formulática. Palavra que aqui significa “coleção de 13 livros em que certos fatores narrativos vão repetidamente acontecer em todo livro, fatores esses que incluem: as crianças mudando o cenário de suas aventuras; tendo acesso a uma biblioteca com alguma particularidade; e tendo que lidar com o Conde Olaf mentindo, iludindo e manipulando as pessoas ao seu redor que deveriam estar ajudando as crianças, mas não estão.” e uma dessas formulas é a de que em todo livro elas vão ter um tutor cuidando delas. Nos sete primeiros livros esses tutores são oficiais e designados pelo banqueiro que cuida da fortuna dos órfãos Baudelaire, porém do livro oito em diante os tutores serão não-oficiais, pois os Baudelaire vão se tornar foragidos da justiça e os tutores serão adultos que vão acolhê-los ao longo do livro sem nunca assinar um documento que lhe dê realmente a guarda das crianças. E no nono livro a tutora dos Baudelaire é essa mulher chamada Olivia Caliban, mas no livro ela é chamada 90% das vezes pelo seu nome artístico: Madame Lulu.

MadameLuluCover

Madame Lulu cuida de um circo no meio de um deserto no interior, um circo que mal se sustenta e está caindo aos pedaços e cuja principal atração é o show de aberrações. Apesar disso, o cliente mais constante do circo não vêm pelas aberrações, vêm por ela. Madame Lulu é uma grande vidente, e o Conde Olaf a visita constantemente para perguntar a ela onde ele pode encontrar os Órfãos Baudelaire, e ela sempre conta para ele. Ela contou para Olaf do tio Monty, do Lago Lacrimoso, da Serraria, do Colégio Interno, da Cobertura de Esmé, da cidadezinha de VFD e do Hospital Hemlich, e agora pela oitava vez, Olaf vai até ela para descobrir onde os Baudelaire estão e poder armar um novo plano.

OlafLulu

Ou seja, ela é introduzida como uma aliada de Olaf. Mas mal sabia Olaf que os Baudelaire estavam escondidos no porta-malas do vilão. Eles se disfarçam de aberrações para se esconder de Olaf no próprio circo, como parte das atrações de Lulu, e com isso eles vão aprendendo mais sobre ela. Eles aprendem como ela explora e tira vantagem das aberrações, humilhando-as por lucro sem dar pagamento nenhum a elas, e fazendo-as se sentirem envergonhadas de características que não necessariamente excluiriam aquelas pessoas da vida em sociedade (como a ambidestria). Ou seja, temos uma visão negativa de Lulu.

Kevin
Kevin, a aberração.

Porém investigando a origem de seus poderes de vidência, os Baudelaire descobriram que isso era tudo um disfarce. Que seu nome era Olivia Caliban e que ela era um membro de VFD, a organização secreta que os pais de Baudelaire e o Conde Olaf fazem parte. Pois bem, a VFD é uma organização que se dividiu ideologicamente, e tem metade de seus membros formados por incendiários gananciosos e metade formado por eruditos que combatem a vilania, e nós somos induzidos a ficar na dúvida sobre a de qual lado Olivia está. Pois por um lado ela está ajudando o Conde Olaf, mas por outro, ela dá muitas respostas aos Baudelaire para suas dúvidas e ajuda os órfãos também.

E então descobrimos que essa é a base da personagem de Olivia. Ela acredita fielmente no lema “Dê as pessoas o que elas querem.” o que significa que se crianças precisam de ajuda ela ajuda. Se nobres voluntários precisam de ajuda ela ajuda. Se vilões precisam de ajuda, ela ajuda. Ela ajuda todo mundo sem hesitar, pois ela dá as pessoas o que as pessoas querem. Mesmo que as vezes as pessoas queiram desumanizar e humilhar quem nasceu com certas características diferentes, não cabe a Olivia julgar, só lhe cabe fazer o que as pessoas querem.

LionPit
E se o que as pessoas querem é ver alguém ser jogado aos leões para ser devorado como entretenimento, então ela dará ao povo o que o povo quer.

E é por isso que ela é vidente, para que ela responda qualquer pergunta. Independente de pra quem. Se a VFD se dividiu entre um lado bom e um lado mal, então a impressão que passa é que Olivia decidiu não tomar nenhum lado e agradar a todo mundo. Mas os órfão a colocam em uma sinuca de bico e expõe o fato de que ela está em um contexto onde é obrigada a tomar um lado. Afinal, o que os Baudelaire querem e o que Olaf quer são contraditórios e os dois estão na companhia dela no circo, então ela vai ter que escolher um lado pra ajudar. E a impressão que temos é a de que ela escolheu ajudar os Baudelaire, prometendo fugir com eles e levá-los a uma base de VFD.

O que torna tudo muito trágico quando ela é assassinada pouco depois dessa promessa, traída por uma ciumenta Esmé Squalor, e devorada por leões famintos, em um espetáculo que tinha tanta violência e tanta comilança porca que era garantia de salvar o circo e trazer o público pagante ao local. A morte de Lulu é um momento pesado de perda de esperança, pois estávamos contando com ela para salvar os órfãos.

Mas então vem o twist. Depois de seu assassinato, os órfãos descobrem que ela traiu os Baudelaire, e contou pra Olaf que eles estavam disfarçados de aberrações o tempo todo. O que é uma das maiores traições que os Baudelaire vão receber ao longo de todos os 13 livros. Provavelmente perdendo só para o momento em que Esmé Squalor empurra os órfãos no poço do elevador. Mas enquanto Esmé é definitivamente uma vilã, nunca fica claro para o leitor, como ele deve se sentir a respeito de Lulu e sua traição. Assim como nunca fica claro se o flerte dela com Olaf era genuíno e ela gostava do vilão, ou se era um disfarce para colocar o vilão na palma de sua mão. Ela mentia para Olaf e mentia para os Baudelaire, então nunca fica claro o que era verdade. E talvez a verdade não seja nada complicado, talvez fosse tudo muito simples. Talvez no fundo ela fosse meramente uma mulher que queria agradar todo mundo e acabou desapontando muita gente, pois a verdade é que é impossível agradar todo mundo, e quando se tenta as chances são de que você desaponte muita gente.

CaligariCarnival
Ela dá a garantia de que vai dizer o que você quer ouvir. 

A série de livros fala muito da divisão entre o bem e o mal, e sobre como essa divisão pode ser não tão bem definida, e como as pessoas podem ser uma bagunça. E a Madame Lulu é a primeira personagem que é realmente difícil ao fim do livro conseguir propriamente classificar entre bom ou mal. Mas certamente não é a última.

Por isso meu choque ao ver que foi logo a Lulu que a série escolheu pra personificar um personagem que sempre teve a bússola moral no lugar. E eles realmente a descrevem assim: “Uma mulher que tinha a bússola moral bem-ajustada.”

WellDefinedMoralCompass
“Eu não tive o privilégio de conhecer Olivia Caliban. Mas sei que meu irmão a amou. Eu sei que suas armas eram a curiosidade e uma bússola moral bem-ajustada.”

Uma mulher nobre que decidiu lutar contra a injustiça, e não se rendeu ao mal até o final, morrendo logo depois de salvar a vida dos Baudelaire. Na série ela conhece os Baudelaire em Prep Prufrock, o colégio interno que eles frequentam, e desde então simpatiza com eles, e sente uma inclinação em ajudá-los e manter seus ideais vivos, o que ela finalmente consegue fazer quando conhece: Jacques Snicket, um voluntário de bom coração que está tentando ajudar os Baudelaire. E juntos a dupla passou muitos episódios demonstrando erudição, bom coração e principalmente competência. E é aqui que eu quero chegar. A série do Netflix passa um tempo absurdamente grande nos mostrando adultos que sabem o que estão fazendo e têm os meios de ajudar.

Jacquelyn

Adultos competentes, personificados primariamente na personagem criada exclusivamente para a série que aparece logo no primeiro episódio da primeira temporada: Jaquelyn Scieszka, uma mulher foda, talentosa e competente que está sempre ajudando os Baudelaire pelas sombras.

E ver adultos competentes é algo muito estranho. Pois adultos incompetentes são o feijão com arroz de A Series of Unfortunate Events.

ArthurPoe

Nos livros, enquanto as crianças são caracterizadas primariamente pelos seus talentos: Violet é uma inventora, Klaus um pesquisador, Sunny no nono livro descobre que é uma potencial cozinheira, Isadora é uma poeta, e Duncan um jornalista. No futuro conheceremos ainda mais crianças talentosas. Os adultos são caracterizados primariamente pelas complicações de personalidade que atrapalham as crianças.

Freaks
“Se ela não fosse uma aberração, poderia ser uma excelente chef de cozinha.”

Apesar de trabalhar no banco, o Sr. Poe nunca é mencionado como sendo particularmente talentoso com contas ou com burocracia, ele nunca é descrito pelo que sabe fazer, ele é descrito somente colocando em foco sua completa negligência quanto aos Baudelaire. Ele não acredita neles, não valoriza suas opiniões, não sabe muito sobre eles, e não dá ouvido a eles. E no fim é revelado que ele tinha um preconceito contra órfãos, acreditando facilmente que eles viraram criminosos justamente por que eram órfãos.

MrPoe
“Eu devia ter previsto isso. Pessoas com seu histórico costumam mesmo acabar na cadeia.”

Tia Josephine deve ser uma mulher de muitos talentos, mas o único que ela demonstrou ao longo da série foi o de fazer correções desnecessárias de gramática. De resto sua marca não eram seus talentos, mas sua covardice, e o medo de absolutamente tudo, que a apavora desde que virou viúva.

AuntJosephine

A característica maior de Esmé é a de guiar todas suas decisões se baseando no que está na moda e no que está fora de moda. A de Jerome é sua recusa em entrar em discussões, o que o torna  uma pessoa passiva incapaz de desafiar alguém que faz algo errado. Charles reconhece os defeitos de Sir, mas está apaixonado por ele e se sente inclinado a permitir que Sir faça um número de atrocidades com os quais Charles não concorda, por amor. Hal está afundado em um profissionalismo que o impede de notar o quanto as regras de seu trabalho (que é arquivar informação para que ela não se perca e seja preservada), tornam o trabalho completamente inútil, mas ele o executa e mantém a regra mesmo assim (regra essa que proíbe qualquer informação ali de ser lida em praticamente qualquer contexto, tornando a informação preservada, porém inacessível a todo mundo). Hector se sente intimidado pelo Conselho dos Anciões, e por isso tenta passar desapercebido em todo momento em que ele deveria se impor.

Nenhum deles pode ajudar as crianças, pois todos eles têm neuroses de adulto para impedir eles de tomarem decisões e questionarem autoridades e instituições. Eles estão imersos demais no ambiente adulto, para questionar suas contradições. E é justamente por isso que Olaf consegue manipular todo mundo, porque por mais transparente que seus disfarces sejam, ele fala a “língua do ambiente adulto” e apresenta seus argumentos embasados nas falácias que regem os adultos, permitindo que ele domine o ambiente que os Baudelaire não dominam, por não verem o mundo nesses termos.

YessicaHaircut
“Como pode ver pela minha pinta, nós nunca nos vimos. E como pode ver pelo meu casaco, chapéu e lenço, venho a negócios.” O real talento de Olaf como ator é o de ler o ambiente e se portar exatamente como os demais adultos esperam que ele se porte, enquanto as crianças entram em atrito com os adultos por sua sinceridade.

As crianças por outro lado sempre podem ajudar umas as outras, pois elas têm talentos e especialidades que permitem que elas sejam criativas, pensem fora da caixa, e fora dos moldes da sociedade para pensar em soluções para os problemas.

Por mais que de vez em nunca os Baudelaire encontrem um membro da VFD capaz de ajudá-los, é mais comum do que não, que os membros da VFD por mais informação e boa intenção que tenham, sejam inutilizados pelas suas neuroses de adulto, e obriguem as crianças a cuidarem de si mesmas, por não poderem contar com os adultos.

Tema que é repetido na outra série de livros escrita por Lemony Snicket: All the Wrong Questions, que se passa no mesmo universo de A Series of Unfortunate Events e também retrata um grupo de crianças com grandes talentos tendo que compensar a inutilidade dos adultos para protegerem umas as outras. Com um sutil foco no fato de que algumas delas cresceram para se tornarem os adultos inúteis que não ajudam os Baudelaire.

AllTheWrongQuestions

O que é fundamental para o tema da série. Porque apesar de menos de um ano se passar ao longo dos 13 livros, as crianças tendo seu envelhecimento retratado, com o aniversário de Klaus sendo passado na prisão, por exemplo. E apesar delas não ficarem fisicamente adultas, esse um ano, marca a passagem das crianças do mundo das crianças ao mundo adulto. Antes de perderem seus pais no incêndio criminoso, elas brincavam e se divertiam e não tinham preocupações. Agora, elas entraram no mundo adulto, elas ganham independência, responsabilidades, e são obrigadas a fazer decisões morais, e vemos como isso gradualmente vai mudando os Baudelaire, e principalmente, vai despertando neles o medo de que eles se tornem exatamente as pessoas que os desapontaram. O contraste entre criança e adulto, aumentam o medo das crianças em cruzar a linha e se tornarem as pessoas com quem elas não podem contar.

Arson
Eles podem contar pra si mesmos que não tinham escolha a não ser incendiar o parque. Mas a verdade, é que eles incendiaram mesmo assim, e vão viver com essa culpa pelo resto de suas vidas.

E talvez seja por isso que seja tão estranho ver na série membros da VFD serem o “esquadrão salvamento do dia.” inclusive se autodenominando o Deus Ex Machina das crianças em determinado momento, sendo competentes, talentosos, tendo conhecimento e boa intenção o suficiente para ajudar as crianças, e não tendo nenhum tipo de má-intenção, e só não ajudando as crianças ou porque os vilões foram ainda mais competentes, ou por falta de timing.

DeusExMachina
“Não podem nos deter. Somos o Deus Ex Machina

E é um conceito que soa fora de lugar em um mundo onde as crianças nunca podem contar com os adultos, e isso é parte do que torna a história uma história triste e de tragédias. Que foquemos tanto tempo em um número relativamente alto de adultos competentes. Larry, Jaquelyn, Jacques Snicket, e finalmente Olivia Caliban. Que em invés de ser o auge do adulto que deixou as crianças na mão por conta de suas prioridades e neuroses, e em vez de ser o primeiro personagem a nos mostrar o que é um personagem estar genuinamente dividido entre o bem e o mal, em vez de tudo isso ela se tornou o principal adulto competente da temporada, e uma das mortes mais trágicas da série juntamente do Tio Monty e Jacques Snicket.

MadameLulu
“Eu estou com vocês. Eu estive o tempo todo.”

Por último a série nos revelou que Madame Lulu era na verdade um título que várias mulheres de VFD usaram para se tornarem informantes no circo, e a última mulher a usar o título, revelada na última cena, é a mulher que protegeu o açucareiro a temporada inteira, o que dá uma heroicidade extra para a personagem que já tinha sido heroizada, e nos prepara para a entrada da Madame Lulu original na terceira temporada (não direi o nome da personagem, mas nos livros ela personagem existe, porém nunca administrou o Circo Caligari, só havia uma Madame Lulu).

KitSnicket
Enfim poderemos vê-la.

Eu acho que os bons adultos deveriam ficar mais implícitos, mas que para o efeito necessário ser passado, nós devêssemos ser expostos a adultos competentes o mínimo possível, e ao máximo possível a adultos que temos dificuldade em classificar como bons ou maus. Nada contra Jacquelyn, mas se além de atrapalhada pelo Conde Olaf, ela fosse atrapalhada pelos seus desconfortos sociais, seria mais interessante. E por isso a escolha do que fizeram com Madame Lulu me soou estranhíssima, e não consigo imaginar em um bom motivo para terem retirado sua ambiguidade da adaptação. O que me deixa receoso. Será que a adaptação quer diminuir o foco no quão tênue e difícil de determinar é a linha que separa o bem do mal, e se for esse o objetivo da adaptação, será que os personagens da terceira temporada, que é onde esse tema vem com tudo numa voadora de dois pés no seu peito, vão ser afetados? Isso me deixa inseguro quanto ao futuro.

Ishmael
Principalmente no que diz respeito a um personagem chamado Ishmael.

Afinal nessa mesma temporada, a dificuldade de Jerome em discutir e seu medo de brigar com os outros é algo que é mencionado tão por cima que nem parece uma característica importante dele. Então será que o Daniel Handler quer diminuir o impacto dessa faceta na adaptação. Porque isso me deixa intrigado quanto a qual será o objetivo dele com essa mudança? Tornar a série menos pessimista talvez? Ou outro objetivo que eu vou precisar ver a terceira temporada pra saber? A pulga atrás da orelha fica picando por causa disso que vocês não tem ideia.

JeromeSqualor
A inutilidade de Jerome foi menos devido a sua personalidade, e mais devido ao fato de que ele foi drogado e ficou inconciente por metade da história.

Pensando aqui, na primeira temporada, já fizeram isso com a Tia Josephine, que apesar de ajudar os órfãos ao longo do livro, no final sua covardia fala mais alto, e ela diz a Olaf que lhe dará a guarda dos órfãos se ele a mantiver viva, e que não ia lutar pelas crianças. Mas Olaf não confia nela e a mata. Na série Josephine se impõe e supera sua covardia para defender as crianças. Talvez a série realmente queira redimir esses adultos.

E é isso que eu queria tirar do peito. Mas essencialmente isso, porque vou ser sincero. Exceto por Lulu fortemente e por Jerome sutilmente (a Josephine foi só na última cena e não em sua construção, então não conta), todos os outros personagens acertaram tão na mosca que eu nem puto consigo ficar.

Nero
Em especial o Nero. Nossa, esse foi certeiro. Que interpretação boa.

A série mudou outras coisas em relação ao livro também, mas quanto a isso eu fico de boa. Por exemplo: a série não está mais matando gradualmente os capangas de Olaf, muito embora tenha brincado com nossas expectativas de que a/o capanga de gênero indeterminado morresse no incêndio do Hospital como deveria ter acontecido. Se por um lado a indiferença de Olaf quanto ao fato de que seus planos estão custando a vida de seus aliados e de como ele está a cada plano gradualmente mais sozinho é um fenômeno interessante de acompanhar, por outro, os capangas se tornaram uma força tão mais carismática na série que no livro, que ninguém pode culpar a série por querer manter eles vivos por mais tempo. Até porque mesmo com a sobrevivência da pessoa de gênero indefinido, ficou bem claro que Olaf estava disposto a largá-lo pra trás, então a vilania dele foi enfatizada igualmente. Mas é ótimo ver esses capangas durando mais, em especial o/a de gênero indefinido, que é disparado o membro com menos destaque da trupe nos livros e na série é simplesmente fantástico, o mais legal da trupe.

HenchpersonUndeterminedGender

E é isso. Que venha a terceira temporada em 2019 que o hype está forte desde de já.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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