Qual a diferença entre a Disney, a Pixar e a Dreamworks?

Q

Os três maiores estúdios de animação da atualidade são a Pixar, a Disney e a Dreamworks. Anualmente eles disputam pra ver qual vai ser a grande estreia de animação do ano e esses três fazem isso faz décadas. Eles são rivais entre si em premiações, sucesso de crítica e bilheteria de uma maneira que a Blue Sky, a Sony Animation e a Illumination não chegam nem perto. Mesmo com os Minions e mesmo com o Scratchy. Esses três estúdios têm história demais competindo entre si.

Studios

Muito embora eu acredite que a Illumination um dia chega lá, futuro bem próximo eu diria. O que eu lamento, pois acho o estúdio um lixo imenso. Quem eu realmente queria ver um dia concorrer pau a pau com esses três gigantes é a Laika, estudiozão da porra que esse sim merece.

Laika
Melhor estúdio de animação da atualidade, falei.

Desculpem aí, fãs dos minions. Eu odeio eles, e estou disposto a cumprir minha parte para eliminá-los completamente do entretenimento mundial, seja ela qual for.

Mas não vamos falar da Illumination. Vamos falar da Pixar, da Disney e da Dreamworks:

Dentre a Pixar fazendo um esforço imenso pra não ser visto como um mero braço da Disney, e da Disney fazendo outro esforço imenso pra não ficar na sombra de um braço mais talentoso que o corpo inteiro e a Dreamworks não ligando de ser confundida com a Disney de vez em quando, desde que dê lucro. Os três atualmente estão pirados na ideia de fazer sequências e franquias, o que não é surpreendente pra Dreamworks que pirou nisso dez anos antes, mas é surpreendente pra Disney que após a vida toda evitando ao máximo colocar sequências e continuações na sua sagrada lista de estreias cinematográficas (deixando suas sequências para serem feitas direto-pra-dvd com orçamento menor), e só estreou uma única sequência no cinema na história de sua existência (que é The Rescuers, Down Under ou Bernardo e Bianca na Terra dos Cangurus, para os não familiarizados com o nome original), vai enfim quebrar o tabu e estrear duas sequências consecutivas no cinema. Wreck-it-Ralph 2 em 2018 e Frozen 2 em 2019, marcados para serem os 57º e 58º filmes da tão sagrada lista de “Filmes Clássicos da Disney”. Nem Lion King 2 recebeu esse tratamento. A Pixar igualmente está abraçando sequências cada vez mais e podemos ver que se tornar o favorito dos críticos está se tornando uma prioridade cada vez menor se comparado com “se tornar o estúdio que criou o Lightning McQueen.

RalphBreakstheInternet

Mas o que isso significa? Significa que depois de Dreamworks copiando a Disney e a Pixar lançando filmes com a mesma ambientação no mesmo ano (AntZ e A Bug’s Life no mesmo ano, quem lembra?), é a hora da Disney e da Pixar copiarem a Dreamworks se perdendo em franquias? Quem está copiando quem?

A resposta na verdade é: no que se refere a isso ninguém está copiando ninguém. São só estúdios agindo como estúdios.

Independente de como elas se copiam em estratégias para lucrar mais, ou como elas copiem a ambientação de seus filmes, ou como disputem superioridade técnica em algum aspecto da computação gráfica, ou como estendam sequências até a raspa do tacho. Apesar de tudo isso, os três estúdios são notavelmente autorais. Claro que em cada estúdio terá algumas exceções, mas a maioria absoluta dos filmes de cada um dos três reforça a mesma moral, os mesmos valores e o mesmo tipo de jornada que os personagens terão que fazer.

E o segredo nisso está em responder as seguintes perguntas: “Quem é seu herói? O que ele quer ser? Onde ele está? E onde ele deveria estar?”, cada estúdio, independente de que filme faça, tenta muito responder essas perguntas ao máximo, e cada estúdio dá uma resposta notavelmente diferente do outro.

Herois
Cada protagonista de cada estúdio segue um perfil narrativo específico.

E é sobre isso o texto de hoje, sobre qual é a mentalidade da Disney, da Pixar e da Dreamworks no que diz respeito a identidade de seu herói e seu lugar no mundo.

Começando pelo gigante:

Walt Disney Animation Studios:

WaltDisneyFeatureFilms

A Disney é a maior veterana da animação que existe na atualidade. E é difícil vencer a Disney nesse quesito quanto o primeiro longa animado da história veio desse estúdio. Na ativa faz 80 anos e com 56 filmes que recebem o rótulo não oficial de “Walt Disney Animated Canon.” para separá-los e torná-los mais legítimos que coisas como… como A Goofy Movie (que é ótimo) ou Cinderella 3 a Twist in Time (eu simplesmente amo o título desse filme. Primeiro o nome de um conto de fadas clássico, depois o número “3”, deixando implícito que teve um “2” já desnecessário, e depois um subtítulo que indica uma trama de viagem no tempo… obra de arte.).

Enfim, esses 80 anos são divididos em três fases que podem ser resumido como “Fase em que o Walt Disney cuidava da porra toda pessoalmente.”, ou Era Clássica. “Fase em que o Disney morreu e tava todo mundo perdido e perdendo dinheiro esperando uma resposta cair do céu e todo filme feito era uma grande aposta que tinha a responsabilidade de salvar o estúdio.” ou Era das Trevas. Essa segunda fase é notável por ser ruim, mas todo mundo, eu inclusive, tem uns filmes favoritos do estúdio que estavam lá. A terceira e atual fase é “Nos achamos na vida, e agora seguimos um padrão narrativo claro.” que é a na qual eu vou focar, porque muito obviamente a fase 2 não tinha um padrão e a mente criativa da fase 1 não apita nada lá do pós-vida.

DisneyEras
Ou se adotarmos esse modelo que separa a Disney em 6 fases, eu vou focar nas três últimas.

Muito bem, a terceira fase, começou com o chamado Renascimento da Animação, e começou com esse filme chamado de The Little Mermaid, clássico já analisado aqui no blog, que revitalizou todo o conceito de princesas, e de musicais clássicos. E foi um salto enorme na carreira de todo mundo envolvido. E desde então, apesar de alguns altos e alguns baixos, a Disney ainda bebe na fonte de The Little Mermaid e tudo que deu certo ali.

LittleMermaid

Pois bem, se julgar pelo que saiu dali, o leitor mais antenado vai saltar na frente e falar.

Ah há! É essa a característica da Disney: Se liga, eles enfiam princesas e músicas. Eles tem esse vilãozão sinistro e esse animal falante e magia.

Princesses
MÁGICA!!

Sim, sim, a Disney tem tudo isso. Mas isso é tudo estético, nada disso é narrativo. Não adianta nada você ter sua princesa, sua música, seu vilão e seu animal falante se você não tem a história, e a história é quase sempre a mesma. É a história de alguém querendo descobrir quem realmente é e aonde pertence.

Remember
“Lembre-se de quem você é!”
TarzanKal
“Eu vou ser o melhor macaco!”

Os filmes Disney pós-pequena sereia tem o grande hábito de fazer um foco pesado no protagonista, mas não meramente no protagonista, mas no deslocamento dele e em como apesar de todo mundo se encaixar perfeitamente no status quo eles se sentem desencaixados.

Belle
“Tem que existir algo melhor que essa vida provinciana.”

Moana

GoodGirl
“Seja a boa garota que você tem que ser.”

Ariel é a única das inúmeras filhas de Triton a não corresponder as expectativas do pai. Belle não se encaixa em sua cidadezinha provinciana. Hércules é forte demais e por isso é rejeitado. Mulan não se encaixa nas expectativas da sociedade chinesa e Pocahontas não se encaixa nas expectativas da tribo Powhatan. Tarzan não se encaixava com os gorilas e Aladdin era perseguido pela polícia por ser um ladrãozinho pé-rapado. Lilo não se encaixava com as menininhas da escola dela. E Kenai não se encaixava com o pessoal da tribo dele. E nem a Tiana e nem a Moana e ok, vocês entenderam.

E o que eles mais queriam era ou poder mudar quem eles eram, ou descobrir qual era o lugar ao qual eles pertenciam, dependendo da natureza do deslocamento dele. Tarzan muito claramente queria ter o corpo de um gorila, enquanto Belle queria é sair daquela vila e ir para um lugar mais progressista.

IAmSong

GoThedistance
Isso nos é explicado naquilo que chamamos de I Am Song, uma canção em que o herói nos conta sobre suas frustrações e o que ele deseja, e o que ele deseja sempre é ou explorar o que ele está proibido de explorar ou encontrar seu lugar.

Pois bem, então acontece qualquer evento que influencie o plot, que pode ser a remoção a força do protagonista de seu ambiente, ou a chegada de uma novidade, mas esse evento vai permitir que o protagonista viva uma situação de dualidade e use essa novidade para descobrir quem ela ou ele é, seja essa dualidade a vida em dois mundos, a vida em duas formas ou ambos.

MulanDualidade1

MulanDualidade2
O alto foco que Mulan tem em seu rosto dividido entre suas duas faces são certamente o momento na Disney em que essas dualidades ficam mais explícitas. Essas e a música “Two Worlds, One Family” de Tarzan.

Ariel, Kenai, Kuzco e Tiana são exemplos de personagens que tem duas formas durante o filme, e lutam o filme todo pra recuperar a forma original, porém chega o ponto em que eles tem que escolher se a forma original deles é o que eles realmente querem.

Tiana

Mulan e Aladdin são personagens que tem duas identidades que eles podem alternar. A primeira identidade é quem eles são, e a segunda é uma identidade que eles criaram para adentrar em um mundo que os excluiria. Eles transitam entre dois mundos e tem que em certo momento escolher ser quem eles eram no começo e invadir o mundo do qual eram excluídos sem os disfarces. Pra Mulan isso era juntar os soldados pra enfrentar Shan Yu, sem estar vestida de Ping. E para Aladdin isso era ser um casal com Jasmine sem fingir que é um príncipe.

Tarzan, Hércules, Rapunzel, tem dois lares, um em que eles nasceram, e outro onde eles cresceram, e a descoberta disso força eles a escolherem a qual lar eles pertencem. Se o lugar deles é com quem os criou ou onde eles nasceram.

Elsa e Simba tem dois lares também, mas com uma diferença, o segundo lar é um lar de auto-exílio após fugir em vergonha e culpa. E eles precisam escolher voltar e assumir a consequência de seus atos para descobrir quem eles realmente são.

Pois bem, a solução pra essa dualidade leva eles a uma epifania de saber quem eles são e onde eles devem estar. O lugar de Tarzan é na selva, mantendo o legado de seu pai, Kerchark, mas ao lado de Jane e dos humanos. O lugar de Ariel é em Terra-Firme, o lugar que ela ama mais que tudo, mas mantendo contato com seu lar no mar. O lugar de Quasimodo é em Notre-Dame, mas como membro da comunidade de Paris, e não isolado dela. Independente de qual for o lugar, o herói encontrou pessoas que o fazem se sentir aceito e encaixado.

Fim
O lugar de Simba é no trono de Pride’s Rock.

E o mais importante, independente de onde o herói escolhe, ele é uma ponte entre os dois mundos e essa será sua identidade, e não importa qual lado ele escolheu, ele levará algo do lado que ele não escolheu pra ser parte de sua nova vida, agora em seu lugar.

Então a Mulan é dada uma escolha, ela pode se tornar a primeira e possivelmente única mulher dentre muitos anos a ser membro do conselho do imperador. Mas ela recusa uma vida de ocupação de um ambiente masculino, e volta para casa para voltar a ser a flor-mais-bela-que-desabrochou-em-tempos-de-dificuldade com sua família. Mas ela traz consigo símbolos de honra, e um lembrete de como seu histórico de heroína de guerra trazem mais honra pra família do que um noivo traria. E ela traz também Shang, seu capitão que segue sendo parte de sua vida (e fica implícito que eles vão ter um romance, mas não acho que seja esse o ponto. Ele era um amigo do Ping que se tornou mais que um amigo da Mulan).

ShangeMulan

Tarzan inicialmente escolhe viver entre os humanos, pra viver com Jane, e não ia levar nada da selva consigo, só as roupas de seu pai. Ele se arrepende da decisão, volta pra salvar a família de gorilas que ele deixou pra trás do caçadores, e decide seguir o legado de seu outro pai, Kerchark, e fica na selva. Mas Jane e o pai dela ficam junto dele, ele mantém contato com a sua espécie.

Timon e Pumba ficam na corte real do Simba. Pocahontas manda John Smith pra inglaterra, mas fica como uma diplomata para garantir que os colonos e os indígenas não entrem em conflito (pfff, que ingênua). Hercules fica na Terra com Meg, mas é reconhecido pelos Deuses e ganha seu espaço nos céus, literalmente, pois fazem a constelação dele… e por aí vai.

BrotherBear

Então os heróis são destacados por um conflito de dupla identidade. E a solução pra esse conflito é achar o melhor dos dois mundos, e só isso. Sempre que o personagem escolhe um lado sem trazer nada do outro, ele é punido pelo roteiro. Então se Ariel quer ir pra superfície para cortar laços com seu pai, a ela lhe espera a tragédia, mas se a transformação dela em humana tiver a benção de seu pai, então o que lhe espera é o “felizes para sempre”, o conflito entre dois mundos não é solucionado com ruptura, mas com integração.

Como a música em Tarzan diz: “Two Worlds, one Family.”

Agora, de todos os filmes Disney, quais são os menos Disney? Wreck it Ralph! Fácil. Digo, tem mais alguns, mas os outros tentam muito ser a própria coisa, sabe? Tipo, Big Hero 6, é diferente de muita coisa na animação atual, e isso é ótimo. Zootopia também. Mas Wreck it Ralph não é tão diferente… é tipo a Pixar escancarada ali.

WreckItRalph

Mesmo com a Vanellope sendo uma princesa.

Então vamos falar da Pixar.

Pixar:

pixar

Na ativa desde 1995, pioneira no uso de CGI para fazer animação, o que hoje se tornou a norma. Produziu 17 filmes nesse meio tempo, com quatro títulos futuros anunciados, e desses quatro, três serão sequências.

É, um dia a Pixar foi sinônimo de qualidade absoluta e criatividade e originalidade, mas hoje, embora ainda seja disparado o estúdio mais criativo dos três, eles estão tentando fazer menos esforço em provar isso e mais esforço em ser uma mega franquia.

E se Cars ser um dos filmes mais investidos do estúdio mesmo sendo notavelmente rejeitado pela crítica não prova isso, nada prova.

CarsMerchandise
Mas não seria a primeira vez em que uma companhia de brinquedos seria cúmplice do que a animação tem de mais decadente, seria?

E Toy Story. Tipo, eu acredito que o quarto filme vai ser bom. Mas temos que todos ser sinceros em uma coisa. De cada vinte filmes que tem a palavra “4” como última palavra do título, só um é bom. Sério, “4” é um sinônimo tão grande de desnecessário, que quando chega nesse ponto, o pessoal começa a dar migué e dar outro título para ver o expectador não nota que a franquia chegou nesse ponto.

JurassicPark
Tem gente que prefere começar uma nova franquia e reiniciar a numeração a admitir que chegou no 4. Sério, é cilada.

Enfim. Vamos lá gente, qual é a fórmula da Pixar? Qual é o segredo para eles terem essa aceitação imensa?

Opa, opa! Essa eu sei! Eles pegam uma coisa que não é gente, e faz eles terem emoções. Então primeiro a gente faz os brinquedos terem emoções, depois a gente faz os insetos terem emoções, depois a gente faz monstros terem emoções, depois a gente faz carros terem emoções, e no final a gente faz as emoções terem emoções!! É isso não é?

Feelings

Isso é uma boa piada. E como toda boa piada, tem muita verdade nela. Mas não! Não tem nada a ver.

Claro que tem! Você vai incluir Wreck It Ralph na tua análise, não vai? É por que os videogames agora tem emoções!

Sim, mas aí estaríamos perdendo o ponto. Estamos falando da identidade do herói e seu lugar no mundo. E como isso se dá na Pixar?

Nemo

Bem, eu já ouvi boatos de que o processo do J. R. R. Tolkien pra escrever Lord of the Rings foi o seguinte. Ele criou toda a terra média, todos aqueles cenários fodas, todo aquele universo fodido. Aí ele pensou “ok, e agora? Preciso inventar um pretexto pro meu herói entrar na maioria desses territórios.” e então ele inventou um pretexto pro Frodo ter que ir a pé do Shire até Mordor. Se isso é verdade ou não, não tenho real interesse no momento, eu puxei essa história, pois eu acho que é mais ou menos o que a Pixar faz.

Os filmes da Pixar são filmes em que o herói é obrigado involuntariamente a romper sua bolha, e explorar um mundo maior do que a parcela limitadíssima que ele acompanha em seu dia a dia.

Wall-E

Então o herói é essa pessoa coisa antropomorfizada. E todo dia ela faz a mesma coisa, em uma rotina. Ela pode estar muito confortável nessa rotina, como Sulley, Lightning McQueen e Woody estavam. Ou muito desconfortável em sua rotina, como Flik e Marlin estavam. O ponto é, eles tinham seu lugar definido na sociedade, e confortáveis ou não, eles cumpriam muito bem seu papel diariamente. Não tinha nenhuma cena deles falando que eles simplesmente acham que existe algo mais na vida a ser encontrado.

Isso quebra o contexto inicial da Disney já, pois raramente pegamos o protagonista iniciando um filme falando sua rotina. Pelo contrário pegamos o protagonista nas vésperas de um grande evento relevante que vá mostrar seu deslocamento. Somos apresentados a Ariel faltando seu baile de debutante que a introduziria à corte. Somos apresentados a Belle recusando um pedido de noivado. E a Mulan prestes a encontrar a casamenteira. Não estão fazendo o que fazem todo dia, elas estavam em momentos-chave de sua vida, que inevitavelmente causariam uma frustração.

Mesmo a Rapunzel que abre o filme literalmente cantando sua rotina diária, tem logo no primeiro ato a notícia de que seu 18º aniversário não poderia ser a exceção pra ela ir investigar seu sonho e de que ela estava mais presa do que ela julgou a vida toda.

Na Pixar não. Woody abre o filme liderando os brinquedos, como ele sempre fez. Sulley está sendo o campeão dos sustos, como ele sempre fez. Joy está coordenando as ações de Riley, como ela sempre fez. E Ralph está sendo jogado na lama como o vilão de videogame, como ele sempre fez.

MonstersInc
Prontos para mais um dia de trabalho.

E então um evento, faz com que eles saiam de sua rotina e explorem um mundo que nunca realmente passou pela cabeça deles explorar.

Se Ariel, a Belle, a Jasmine, o Quasimodo, o Aladdin, o Hercules e a Moana sempre se perguntaram o que estaria lá fora pra eles. O Woody nunca quis saber do que havia no mundo fora da casa do Andy. Não era de seu interesse. Nem pro Lightning McQueen saber o que havia em um mundo fora das corridas.

Por isso eles precisam de um evento que os jogue no mundo. Como o sequestro de Nemo. Ou Woody e Buzz caírem pela janela. Ou a presença de Boo. Ou a chegada de Eve. A chegada de um elemento estranho são boas maneiras de se desestabilizar uma rotina, mas não são a única. Pode ser as memórias-chave se perdendo e a Joy e a Sadness sendo sugadas no tubo.

INSIDE OUT
Ambas fora de sua zona de conforto.

Pois bem, mas agora já era. Marlin tem que encontrar o Nemo. E como ele vai fazer isso? Simples, ele vai percorrer O MAR INTEIRO, o mesmo mar do qual ele morre de medo, pois esse é o arco de personagem dele, e é assim que a Pixar nos introduz tudo que o mar tem de legal. O Woody saindo do quarto do Andy, encontra brinquedos de brinde, brinquedos de menina, brinquedos remendados. O Wall-E conhece robôs que funcionam de uma maneira totalmente diferente da dele. E o Flik encontra insetos da cidade grande com realidades muito diferentes da de seu formigueiro.

CityBug

Quebrar a bolha, e com a quebra da bolha, vem diversidade. O herói tem que ser introduzido a coisas que ele nunca viu antes. Pro Ralph isso são jogos de gêneros diferentes do dele. Mas o importante é diversidade. Em Up, dos 3 aliados que Carl faz depois que ele é obrigado a abandonar seu terreno, cada um é de uma espécie. Em A Bug’s Life, cada aliado de Flik é um inseto diferente. Em Wall-E cada robô que ele faz amizade é um robô diferente. Os secundários da Pixar são diversos e criativos e tem lógicas diferentes, e o protagonista tem que ser exposto a isso.

Para então ele voltar pra sua rotina, como uma pessoa mudada. Ela pode perceber que veio de um sistema tosco e lutar pra mudá-lo, ou ela pode agora ter perspectiva pra aceitar uma realidade que a incomodava. O único que não voltou pra casa foi o Carl, pois ele levou a casa com ele em sua jornada de descoberta do desconhecido.

friends
Buzz ciente de que é só um brinquedo e Woody ciente de que não precisa ser o favorito do Andy, os dois podem voltar para o contexto inicial do filme, pois estão mudados.

Muito embora esses personagens voltem com personagens símbolo de sua jornada pra introduzí-los a nova rotina, isso é diferente dos finais da Disney, pois o personagem não tem que escolher, ele nunca disse que aquele não era o lugar dele, era só uma questão de perspectiva. Então Sulley e Mike nunca ficaram divididos entre o mundo dos monstros e o dos humanos, o dos monstros sempre foi o lugar deles. Mas a Boo e as mil portas pelas quais eles viajaram deram a perspectiva pra eles fazerem do mundo dos monstros um lugar melhor.

E isso é do caralho. Parece que “oh, agora você acabou com a magia da Pixar”, mas não, isso é foda, e é difícil de fazer bem feito. É uma jornada de personagem incrível que só funciona se seu personagem for do caralho, e os da Pixar quase sempre são.

CarlHussel
Ele viajou um continente inteiro até a America do Sul, só para encontrar alguém que ele valorizava mais que aquela casa.

E quando não são o filme fica ruim demais, mas só aconteceu uma vez.

Sim, mesmo Cars. Eu acho o primeiro bem bom, o pessoal fala mal, mas todo o respeito que o McQueen adquire pelas pistas e pela memória do seu veterano após ver a situação de carros com quem ele nunca interagiria. Aquilo ali é história boa sendo contada gente. Pago pau, de verdade.

LightningMcQueenKing
Essa cena é arte pura.

Então… quais são os filmes Pixar que não seguem bem essa estrutura? Fácil, Brave que é um filme completamente Disney, com Mérida dividida entre sua atitude de princesa e a atitude rebelde. E escolhendo e aceitando suas responsabilidades de princesa, trazendo uma rebeldia consigo. Além dela literalmente ter que costurar a divisão que seus dilemas de identidade causaram. No final ela e a mãe acham o meio termo.

MeridaElinor

O outro é Ratatouille que é excelente, muito bom. Mas bebe da água da Dreamworks.

Ratatouille

Wow, wow, wow, eu estou falando que um dos melhores Pixars de todos bebe da água da Dreamworks que não conseguiria fazer um filme de qualidade Pixar nem com o quádruplo do orçamento? Sim, isso é exatamente o que eu estou dizendo.

E vou ser sincero. O dia em que eu entendi qual era a estrutura da Dreamworks, eu adquiri um novo respeito pelo estúdio. Tipo, nunca odiei a Dreamworks, mas eles nunca foram também muuuuuito fodas.

Ok, How to Train Your Dragon é muuuuito foda, ok, eu admito, mas não é coisa que o estúdio faz o tempo todo. Mas eu gosto de muita coisa da Dreamworks. Mas ele sempre soou como o pior do trio, em especial pra crítica. Eu acho que tem é muitos méritos.

Enfim, vamos falar da Dreamworks.

Dreamworks Animation:

Dreamworks

Olha, a gente fala que a Disney é o centro do capitalismo, e isso é verdade sim, mas ainda sim, em décadas, eles produziram só 56 filmes, pois eles têm uma noção de que é necessário investir em projetos e investir não é só dinheiro, é tempo e zelo e carinho. A Dreamworks não. A Dreamworks é puramente indústria, eles tem que ter muito filme, e tem que ser rápidos, mais de um por ano e sem parar.

Na ativa desde 1998, a 19 anos na atividade, eles já produziram oficialmente 35 obras animadas. Sendo o único do trio que faz mais de um filme por ano. E sem vergonha nenhuma. A Disney e a Pixar perderam a vergonha das sequências nessa década, mas a Dreamworks perdeu logo de cara. A quantidade de filmes com “3” no fim do título é assustadora para um estúdio que não tem 20 anos.

Mas vamos lá. Qual é a fórmula da Dreamworks?

Dessa vez eu acerto! São as carinhas!

Que carinhas?

Você sabe… as carinhas. O sorriso maroto cretino que eles fazem nos pôsteres.

DreamworksFace

Ah sim, que meme maravilhoso essa carinha da Dreamworks. Mas não! Eu falei lá em cima que acho a estrutura da Dreamworks interessantíssima, essa carinha é lixo, por mim tirava de todos os pôsteres.

Mas infelizmente essa sobrancelha está invadindo até a Disney.

Enfim, a fórmula da Dreamworks é simples.

Tal como a Disney começa com um protagonista desajustado e insatisfeito com o status em que ele vive. Mas diferente da Disney isso é notavelmente ilustrado com uma contradição muito óbvia na relação protagonista-mundo.

Então todo o mundo só valoriza X e o protagonista é Y e X e Y são incompatíveis.

Vou dar um exemplo. Ei, vamos pegar um mundo em que só é tratado com respeito e dignidade quem é herói de contos de fadas. Um mundo em que príncipes são heróis, princesas vivem felizes para sempre, fadas madrinhas são divas, e só essa gente pode ter uma vida digna. Nesse mundo, vamos contar a história do Ogro! E o Ogro vai viver como Ogro? Mais ou menos, a história vai obrigar ele a ter que fazer o papel do príncipe, mas ele é um Ogro.

Shrek

A condição de Shrek é o oposto de tudo o que é valorizado no mundo em que ele nasceu. Isso é parecido com Belle ser uma intelectual em um mundo interiorano conservador, mas é mais explícito e na nossa cara. Além de que Shrek nasceu um ogro, o deslocamento é notavelmente visual.

Vamos outro? Nesse mundo só Kung Fu importa, Kung Fu é foda e quem é bom no Kung Fu atinge o máximo status de tudo. Nosso herói é um panda gordo sem aptidão nenhuma pro Kung Fu que precisa se tornar um mestre.

KungFuPanda
Olhem bem e me digam, qual desses parece o animal menos apto para protagonizar um filme de Kung Fu?

E se o foco daquele mundo são corridas e ser fodão e mestre da velocidade? Aí nosso herói é a lesma.

TURBO

E se o foco do mundo é ser um bando de viking bombado que mata dragão no braço? Aí o herói é o nerd magrelo.

Hiccup

E se o foco do mundo é ser um espírito benigno que protege as crianças? Aí o herói é o espírito da traquinagem que as vezes causa acidentes.

JackFrost

E se o foco for ser um super-herói? Aí o herói é o super-vilão!

Megamind

O herói é sempre a base da cadeia alimentar. Aquele que todo mundo que entende como a história vai funcionar não vai querer ser.

Se Cars fosse um filme da Dreamworks o protagonista ia ser um pedalinho! E se The Incredibles fosse da Dreamworks o protagonista ia ser o cara que nasceu sem poderes.

Se nos filmes da Disney e da Pixar o conflito surge com um evento que surge e muda a vida dos protagonistas e os guia em uma jornada. Nos filmes da Dreamworks o conflito já começa quando você vê o poster. É um filme sobre um cara que não se encaixa no mundo e não tem lugar nele.

E muita gente fala da empatia que temos pelos filmes da Pixar, o que é verdade, mas acho que já começa aí o sucesso financeiro estrondoso que são os filmes da Dreamworks. Não sei vocês, meus leitores, mas eu sou um cara bem inseguro e com baixa auto-estima e na minha adolescência não realmente sentia que eu era bem-vindo nos ambientes que eu frequentava, como a escola por exemplo. Eu via um pôster em que tinha uma pista de corrida e uma lesma em cima e podia pensar “essa lesma é tipo eu.”

TurboPoster

Enfim. Esse protagonista pode ter se conformado com essa rejeição do mundo, e vestido a carapuça, sendo exatamente quem a sociedade designou que eles seriam? Como o Shrek ou o Megamind fizeram. Ou eles podem ser teimosos e dar murro na ponta da faca e insistir em tentar se encaixar no mundo. Como o Po e o Z fizeram.

O importante é: no final de um filme da Dreamworks, nada que o mundo disse que tinha de errado no herói estava errado. O que estava errado era o mundo. Então quando os conflitos bate de frente, quem perde é o mundo e quem ganha é o rejeitado.

Po
Po não precisou mudar seus hábitos alimentares ou deixar de ser gordo ou nada disso pra se tornar um mestre do Kung Fu tão válido quanto os demais animais. Ele simplesmente forçou até funcionar.

E essa é a beleza de um filme da Dreamworks. É ver que o Shrek não tem que aprender a achar o príncipe dentro do exterior de ogro. É que ele grita “Sou ogro mesmo, e pau no cu de quem não é.” então ele transforma a princesa em um ogro e tem bebês ogros e continua a rugir no pântano que é isso que é bom. E o príncipe que é louvado que se foda.

Hiccup transformou um mundo fixado em matar dragões – um mundo onde ele tinha 0 de aptidão – em um mundo fixado em adestrá-los, onde ele era o mestre. Os personagens da Dreamworks começam o filme com vergonha de serem quem eles são, e o filme é pra eles perderem a vergonha.

Monster vs Aliens começa com Susan com vergonha de ser monstro e querendo sua vida normal de volta. Mas termina com ela cuspindo em sua vida normal, abandonando o nome Susan e concluindo que a coisa mais legal do mundo é ser o monstro.

Ginormica
Ginormica é um caso que eu adoro, pois ao ser transformada em Susan pelo vilão, e se tornar uma pessoa que se encaixa na sociedade, ela se transforma de volta e faz questão de ser um monstro. Essa manja!

E o Po vai continuar gordo, e vai continuar sendo Panda e vai ser o Deus do Kung Fu e ninguém vai dizer o contrário pra ele!

A Dreamworks tem um orgulho-freak que eu genuinamente vejo muito bem representado em Ratatouille. Um filme sobre grandes cozinheiros e sobre ser uma lenda na cozinha, e nosso herói é o rato. No final eles convencem o maior crítico da frança de que esse rato cozinha melhor que qualquer humano e abre um restaurante só de rato cozinheiro.

VAI TER RATO COZINHEIRO SIM! SE RECLAMAR VAI TER UM RESTAURANTE TODO!

RatsKitchen

A gente não vê isso em filme Disney. Quero ver o Aladdin terminar o filme falando “príncipe é o cacete, quero é continuar sendo ladrão.” e a Jasmine vira ladra com ele.

Na moral, eu acho a Dreamworks a fraca do trio, mas acho que eles tem bem mais a oferecer que aquela carinha.

Mas o importante é notar que na animação, muito diferente do live-action, nós temos estúdios altamente autorais com produtores meio apagados.

Um filme do Spielberg é um filme do Spielberg, independente se produzido na Universal, na Warner ou na Paramount.

E um filme da Pixar é um filme da Pixar, independente se foi dirigido pelo Brad Bird ou pelo Pete Docter.

E isso é um fenômeno único. Como se os estúdios estivessem lutando pra ter uma identidade, que os estúdios live-action não exatamente lutam. Um filme ser da Warner não me diz nada. Um desenho ser da Warner me puxa um legado que começou com o Bugs Bunny e chegou até o Freakazoid que dita um estilo narrativo claro e foda e que mesmo trocando de autor e produtor diversas vezes, mantém uma identidade, e uma necessidade de honrar essa identidade.

BugsWarner
Motivo pelo qual a Warner não te vergonha de colocar o Bugs como logotipo de todos seus filmes animados.

E isso é uma das melhores coisas de se pesquisar sobre animação. Ver essa identidade nos estúdios e como eles lutam pra manter.

Um dia espero poder refazer esse post, já tendo saído filmes o suficiente da Laika para eu achar esse padrão com mais segurança. Pois a sério, a Laika é foda.

Mas eu realmente queria que os três parassem de pirar nas sequências… nossa, já deu, né gente.

A fanart que ilustra o post foi encontrada no seguinte deviantart.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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