One Piece – O poder do povo.

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No capítulo 634 do mangá One Piece, o protagonista Monkey D. Luffy tem um momento icônico muito lembrado pelo fandom. Seu aliado Jinbei pede que Luffy seja um herói, e Luffy se recusa, ele afirma que jamais quer ser um herói, argumentando que heróis são pessoas que dividem a comida, e Luffy por outro lado quer comer a comida sem dividir, e portanto ele não é um herói e não se tornará um.

É uma cena cômica, do Luffy perdendo o ponto em um argumento com prioridades estranhas.

E o fandom constantemente se lembra desse momento, pois ter um lado de anti-herói, e não ser o Superman é parte da excência do Luffy. Mesmo que ele não seja do mal, nem edgy, e seja uma boa pessoa, suas intenções não tendem a ser heroicas. E ele admitindo um lado egoísta e seu desejo de não ser um herói marca o leitor.

Mas não é disso que eu quero falar. Eu abri o texto lembrando dessa cena, pois eu quero lembrar que o Luffy define o conceito de herói como alguém que divide a comida. E isso significa que na perspectiva do Luffy ele já conheceu inúmeros heróis, mesmo ele não sendo um deles.

Ele conheceu a Makino que deixava ele comer de graça na sua vila.

Ele conheceu Lika que dividiu o bolinho de arroz com Zoro.

Ele conheceu a Terracota, que pelos pedidos de Vivi, deu pro Luffy e seus amigos um grande banquete como agradecimento por salvarem o país.

Ele conheceu Rebecca que deu um bentô pra Luffy quando esse lutou no coliseu de Dressrosa.

Ele conheceu Keimy e Hatchan que distribuiram takoyaki pra ele.

Ele conheceu Toto que passou a noite inteira cavando uma garrafa de água e deu pra ele.

Ele conheceu Conis e seu pai Pagaya que alimentaram todo o bando quando eles chegaram na ilha do céu.

Mas especialmente ele conheceu Tama, que deu pro Luffy seu último arroz, que era o arroz de Tama de aniversário, e mesmo tendo fome, ela deu o arroz pro Luffy.

Uau, peguei muitas mulheres de exemplo, enfim, essas pessoas são na perspectiva do Luffy todas heroínas. Todas dividiram a comida. E algumas delas sabem lutar outras não. Algumas são parte da realeza outras são plebeias. E algumas fizeram sacrifícios pra alimentar Luffy e outras não. Algumas são crianças outras adultas. Mas todas além de heroínas tem algo em comum, são cidadãs do país que o Luffy estava visitando, e são representantes do tipo de pessoa que vive no país.

Até as princesas são. Pois temos que lembrar que o Rei Cobra mesmo sendo rei não esquece que ele também mora em seu país e é cidadão.

Mas é, One Piece em cada arco seu, e esse é um mangá com muitos arcos, sempre faz questão de nos mostrar quem são os habitantes das cidades que os Piratas do Chapéu de Palha visitam, e esses habitantes são os verdadeiros heróis. O Luffy não é. E além de serem os verdadeiros heróis, eles são também os verdadeiros riscos dos arcos. O vilão vai fazer uma atrocidade e o povo vai pagar a conta. E o povo é esse pessoal que fez amizade com o Luffy. Não é uma massa genérica, a gente sabe o nome e a dor pessoal das vítimas dos vilões.

Pode ser o prefeito idoso com orgulho da cidade que ajudou a construir. Pode ser a fazendeira que planta tangerina que está preocupada com sua irmã, a garota rica doente que vive sozinha na sua mansão, ou a menininha passando fome que deu seu último arroz de aniversário pro Luffy.

E isso é tão sério pro Luffy, que ser ingrato a essa comida dividida pelos verdadeiros heróis é algo que pra ele justifica matar o Zoro.

Esse texto é sobre eles. Sobre personagens que não são piratas, nem marinheiros, eles não navegam os sete mares, eles tem profissões, seus sonhos são acessíveis, eles dividem a comida, são verdadeiros heróis, resistem a opressão, e sonham com um futuro melhor.

Sejam bem-vindos ao Dentro da Chaminé, eu sou Izzombie e esse é um texto sobre como One Piece trabalha o povo que habita as ilhas que o Luffy frequenta. O que ele faz de igual aos demais battle shonens, o que faz de diferente, como sua maneira de abordar esses personagens é traduzido em suas adaptações, e como está impactando atualmente a Saga Final do mangá. Bem-vindos ao texto sobre o povo.

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Pois esse texto é escrito em homenagem aos que já me apoiam, galera gente fina, que foi paciente com o ritmo dos textos ter diminuído nos últimos meses, acho que agora eu retomo um pouco o fôlego. Mas é uma galera fantástica que ajuda muito o blog a ser o que é. Espero que curtam o texto.

E esse texto é sobre o povo no mangá One Piece.

Vamos começar falando de uma personagem que me surpreendeu muito nos capítulos recentes de One Piece. E com recente eu digo dos últimos dois ou três anos, é um mangá de 27 anos, recente é relativo. Enfim, eu quero começar falando sobre como a Moda tem me surpreendido de uns tempos pra cá.

Ela mesma, a Moda.

Se você não tem ideia de quem eu estou falando, você não está lendo errado, é um personagem terciário recentemente promovida a secundária discreta.

Moda:

Moda trabalha em uma fazenda de leite. Um dia ela salvou o irmão de Luffy, Portgas D. Ace de se afogar. Ela leva Ace pra fazenda de leite aonde ela mora, e em troca de ter salvo a vida de Ace, pede pra ele entregar uma carta pra ela. Ace invade a base da marinha pra roubar informação sobre o Teach, mas já que está ali entrega a carta de Moda pro vice-almirante. O vice-almirante abre a carta e vê que era Moda fazendo propaganda do leite que ela vende, se a Marinha não queria comprar.

Por acaso, o café que serviam na base era uma porcaria e os marinheiros estavam mais que felizes de colocar leite no café, no processo de ir comprar leite, foi revelado que os pais de Moda eram os cozinheiros da Marinha e ela pôde rever os pais e conseguir um bom cliente pro seu leite.

Isso aconteceu nas histórias de capa do Ace em 2004. 20 anos atrás.

Em 2018, 14 anos depois, no capítulo 904, Moda reaparece como uma cidadã de Lulusia, o reino que o pirata Barba Rosa está invadindo e pilhando, o reino de Lulusia é salvo por Belo Betty e os revolucionários que inspiram o povo a ganhar força pra enfrentar o Barba Rosa.

Olha ela aqui dando uma paulada na cabeça do Barba Rosa.

Enfim, com essa agora sabemos que o Ace quase se afogou no reino de Lulusia quando conheceu Moda, mas não é só isso.

No capítulo 1060, o Reino de Lulusia é promovido na trama do mangá, ele deixa de ser aquele reino aleatório onde o Ace passou o começo da sua história de capas, e se torna a ilha que o Imu obliterou usando uma arma ancestral, e agora é só um buraco.

O que significa que todo mundo morreu?

Não todo mundo, muita gente morreu, mas a Moda tá viva. O Sabo colocou ela e mais um punhado de cidadãos em um barco.

Os sobreviventes de Lulusia, Moda inclusa, agora estão escondidos na base do exército revolucionário, onde eles são convidados a lutar contra o Governo e Moda é parte do grupo que decide se afiliar ao exército revolucionário.

Tudo isso são cenas em que a gente pode reconhecer o design da Moda em cenas de multidão, mas nenhum destaque pessoal é dado a ela, até o capítulo 1116, em que o Vegapunk em sua transmissão para o mundo fala sobre a destruição de Lulusia, e que foi obra de uma arma ancestral. Um quadrinho somente de Moda ouvindo sobre como alguém destruiu seu país enquanto chora é dado.

E é isso. Se você prestou bem atenção nesse resumo vai perceber que Moda não fez muita coisa, exceto aparecer aqui e ali para representar a população de Lulusia. E embora a população de Lulusia dificilmente vá ter a luta mais animal na guerra final, e que a chance de vermos Moda pessoalmente matar Imu e se vingar pelo seu páis seja muito baixa. Eles ainda importam.

Porque é sobre eles.

Lulusia é uma tragédia, e o mangá constantemente nos lembra da tragédia de Lulusia, porque era um país em que viviam seres humanos. Não por ser um país em que o maior guerreiro do mundo treinou, nem nada. Só porque era um país e ali viviam seres humanos. Seres humanos como Moda, que salvam pessoas e dividem o leite. Mas que são pessoas normais. Fazendeiros, comerciante, filhas de cozinheiros, gente comum. Sem poderes, sem fruto, sem haki. Mas com nome, e com interferência na história.

Se não fosse por ela Ace não teria encontrado Teach, e se Ace não econtrasse Teach ele não seria preso e não teria a saga de Marineford. Olha o efeito borboleta causado por uma menina que só queria vender leite. Ela é parte dessa cadeia de eventos, mesmo se for a parte mais discreta. E ela é afetada pela cadeia de eventos do arco atual.

Ela pra mim é um grande exemplo de como One Piece narra sua história preocupado com o povo. E para falar disso eu vou ter que falar sobre como não é normal um mangá do gênero battle shonen ter essa preocupação. Não é sem precedentes é só raro, e vai ficando progressivamente mais raro conforme esses mangás avançam.

Vamos falar de outros battle shonens:

Antes de mais nada, agora que eu estou indo pros outros mangás, deixa eu definir que tipo exato de personagem eu estou falando quando digo povo. Eu me refiro a pessoas que vivem no mundo normal que existe em paralelo ao mundo de batalhas.

São personagens que não só não tem poderes, como eles também não realmente se envolvem em lutas pra definir o destino de nada em seu cotidiano. Que em vez do dia-a-dia deles envolver aprender sobre poderes, sobre o lore do vilão, ou estar constantemente ficando mais forte pra poder se preparar pros inimigos que encontrará no futuro, o dia-a-dia desses personagens é ir trabalhar, pagar a conta de luz e ter preocupações mais parecidas com as que nós temos. Eles podem saber das lutas, podem até assistir elas, e talvez possam até ter poderes, mas esse não é o mundo deles, essa não é a vida deles. A vida deles é tentar ser parte funcional da sociedade, trabalhar, pagar contas, cuidar da casa.

Em alguns battle shonens, o mundo das lutas e o mundo normal são literalmente separados, em duas dimensões diferentes. Em Bleach o Ichigo tem um portal dimensional que separa a cidadezinha dele e seus amigos da escola da Soul Society onde a luta rola na maioria dos arcos. Embora o mundo das lutas invada a cidadezinha do Ichigo de tempos em tempos. Yu Yu Hakusho era bem parecido.

Em Naruto, os mundos não precisam ser separados por dimensões, mas são separados por fronteiras. A história se concentra em um grupo de vilas militares que vivem isoladas e desconectadas de seus respectivos países treinando guerreiros que possam lutar seguindo as ordens dos governantes dos países. Então os ninjas meio que só interagem com outros ninjas sem nem ver direito os cidadãos do País do Fogo que os ninjas protegem. Mas as vezes alguém que mora nas cidades normais de um país pode precisar de um ninja e pedir uma missão pra vila ninja.

Em Saint Seiya, o mundo dos cavaleiros é um segredo das pessoas normais, um segredo que é violado nos primeiros capítulos, mas em tese as lutas ocorrem em zonas afastadas pro povo jamais ouvir falar delas. O Santuário é inacessível pra turma do orfanato.

Em um mangá como Fullmetal Alchemist, o mundo das lutas acontece longe dos olhos da população, por se tratar de militares tentando derrubar uma conspiração militar, tudo é feito no segredo, então a população não está realmente ciente do mundo das lutas, embora esteja ciente dos alquimistas militarizados, do genocídio de Ishval e de muitas lutas. Só não das que importam mais pra trama presente do mangá.

Aliás esse é o estado mais comum de separação do mundo normal do mundo das lutas. Uma população vagamente ciente da existência do mundo das lutas. Em mangás do subgênero anti-monster corps como Fire Force ou Demon Slayer a existência de gente que mata os monstros e protege civis com suas habilidades únicas não é segredo, mas é algo que não é parte da realidade da maioria das pessoas comuns. Em Jujutsu Kaisen o mundo das lutas já aparenta ser um segredo mesmo, com o mínimo de esforço sendo feito pra não deixas o povo ficar sabendo das lutas. Mas não muito esforço.

Mesmo fora dos anti-monster corps, em Hunter X Hunter as pessoas comuns estão cientes dos caçadores, mas não realmente interagem com muitos ao longo de uma vida, eles são inacessíveis, mesmo não sendo um segredo.

Já em Chainsawman é tudo muito público. Todos sabem que é o Chainsawman e muitas pessoas já testemunharam suas lutas e nada além de sua identidade secreta é um segredo. Mas mesmo em Chainsawman em que os mundos não são separados, ainda são dois mundos. Quem não tem um contrato com um demônio e nem é um demônio, não vive no mundo das batalhas, vive no mundo real mesmo se sua rotina for afetada pelo medo dos demônios. Boku no Hero Academia é a mesma coisa.

E a maioria desses exemplos tem uma fórmula clara.

O mangá começa no mundo normal, fora do mundo das lutas, onde o protagonista, uma pessoa normal que não interage com o mundo das lutas vai ser apresentado a ele. Vai ser exposto ao mundo das lutas.

Então, ele vai entrar nesse mundo começar a treinar, aprender sobre o sistema de poderes e aprender quem são as pessoas que ele tem que matar agora. Eles estão aprendendo, fazendo a transição pro mundo das lutas.

E em um dos primeiros arcos, justamente na fase de transição, vão ter momentos do protagonista se conectando com uma pessoa do mundo normal, de preferência uma criança, para ter uma pessoa normal que precisa ser protegida dos vilões. Esses arcos vem logo no começo, e eles são necessários pra vender pro leitor, em nome do que o protagonista luta. Ele protege pessoas normais, os vilões ameaçam pessoas normais, então nos primeiros arcos introdutórios a gente vê o protagonista olhando essas pessoas nos olhos e entendendo quem eles precisam proteger.

E se possível trazer esperança pra essa criança, fazê-la acreditar que “o seu grupo de guerreiros é legal e daora e eu fico feliz que eles existem.”, vender pra gente um entusiasmo pelos heróis fazendo eles ganharem um fã dentro de seu universo.

Mas depois que isso foi devidamente estabelecido, agora pode ficar só implícito. A gente já sabe que as pessoas normais estarão em perigo se o protagonista não lutar, então não precisamos saber quem é a vítima do vilão a cada arco. Se era importante saber que o Zabuza estava destruindo a vida do Inari e e a conexão dele com seu pai, não é realmente importante entender como cidadãos comuns são afetados pela Akatsuki ou pelo Orochimaru.

A maioria dos vilões que virão nos arcos intermediários, serão vilões que fazer vítimas entre os guerreiros do mundo das lutas.

Os primeiros hollows que Ichigo enfrentou matam humanos, pessoas comuns, crianças, estudantes, e o Ichigo protege eles. Mas o Aisen mata outros shinigamis, e a gente não realmente vai ver o dano de suas ações. Pra ser justo, na reta final o Aizen chega a ameaçar os amigos do Ichigo, mas ele foi apresentado como um assassino de shinigamis e demora pra hipotética ameaça dele a um ser humano ser visível.

E quando a gente ver, não será pessoal. Em Jujutsu Kaisen, a gente sente o impacto emocional das inúmeras vidas que Sukuna tirou em Shibuya, mas nenhuma delas era um personagem com nome, ou alguém cuja morte foi pro leitor uma tragédia pessoal. A tragédia foi o número absurdo de mortos, a estatística. Mas o Itadori não fez nenhum amigo do mundo normal desde o Junpei, então ele nunca vai falhar em proteger um amigo do mundo real. Somente um do mundo das lutas.

Começam arcos em que existe uma população civil ali em perigo durante as lutas, mas eles não são personagens de verdade. Eles não tem nome, personalidade ou sonhos. Eles tem só corpos que podem ser mortos pelo vilão. Então vemos arcos como o trem infinito em Demon Slayer, e vemos que nenhum dos passageiros do trem infinito é um personagem. Somente os membros do mundo das lutas tem nomes, diálogos e arcos. O resto não é nem testemunha dos eventos, são só corpos matáveis pra indicar que o vilão pode ameaçar alguém.

Mas não é comparável as crianças que o Tanjirou olhou nos olhos pra proteger nos primeiros arcos.

Mas a tendência é a perspectiva dos heróis ficar mais e mais e mais focada no mundo das lutas até ele estar tão imerso do lado de lá, que o mundo normal deixa de ser um ponto de fato. O mais normal é esses arcos acabarem em uma guerra final, onde todos os personagens do mundo da luta se envolvem e partem pra batalha. Contra um vilão, que caso triunfe vai conseguir eliminar completamente o lado do bem do mundo da luta. Eliminando esse mundo em si.

Então a batalha final de Naruto não é pra proteger os civis da Nação do Fogo, é pra proteger o mundo ninja. A batalha final de Bleach é pra proteger o mundo dos shinigamis. O povo não é um fator nessas grandes guerras. Não tem nenhum personagem que não seja um herói e não lute que vai ser introduzido durante a guerra de My Hero Academia ou de Demon Slayer, pois essas pessoas não são relevantes. Na guerra final, só é relevante quem é capaz de lutar e só é capaz de lutar quem faz parte do mundo das lutas.

Isso não é pra necessariamente ser um problema. É só uma estrutura básica, e mesmo ela muito mangá rompe com detalhes aqui e ali, temos exceções além do ponto que vou levantar em One Piece, e um mangá que não seja a exceção pode ser bom. Mas a tendência é que no primeiro volume nossa perspectiva esteja muito imersa no mundo normal e no último ela esteja muito imersa no mundo das lutas, ao ponto em que a gente até esquece do mundo normal.

One Piece e os diversos mundos da luta.

Em One Piece a própria separação entre o mundo normal e o mundo das lutas é curiosa. De onde eu vejo, a grande luta do mangá é a luta pelo lendário tesouro One Piece, e o mundo das lutas são as pessoas precisando ficar progressivamente mais fortes pra ou achar o tesouro, ou impedir os piratas de achar o tesouro, no caso da Marinha e do Governo Mundial que tentam deter os piratas.

E esse é o mundo das lutas que existe em paralelo a vida normal de qualquer pessoa normal que não de fato está precisando superar o poder de luta dos Yonkous.

Mas a vida normal dos protagonistas de One Piece ainda é em certa perspectiva uma vida com lutas, é só um micro mundo da luta.

Personagens como Dalton, Pauly ou Rebecca, vivem em uma lógica de treino e fortalecimento pessoal que não mira o topo do planeta, mas mira eles conseguirem paz o suficiente pra exercerem suas profissões. Eles precisam enfrentar inimigos, precisam lutar nos conflitos internos de suas ilhas, e precisam ser fortes, mesmo obviamente não sendo candidatos ao One Piece nem tendo a capacidade de ser.

Existem muitos cidadãos comuns em One Piece que são mais fortes que muitos marinheiros ou piratas. E sempre existe uma chance de um pirata ir pra uma ilha onde um artesão pode te dar um cacete.

Até porque existem piratas que não são tão fortes assim, e estão seguindo um capitão forte.

Pois no mundo de One Piece, entrar no mundo das lutas não é questão de ser exposto a ele, todos estão expostos a ele com frequência, o jornal não fala de outra coisa. E todos pecisam ser fortes pra poder lidar com ele. Então não é a exposição que fará um personagem sair do mundo normal e entrar no mundo das lutas.

Muito menos é o adquirir de um poder novo e a responsabilidade de usar esse poder no mundo das lutas. Até porque é o oposto. Esses personagens já tem o próprio estilo de luta, que é deles, e que é uma expressão clara de sua identidade e da pessoa que eles são no mundo, então, por exemplo, quando o Sanji deixa o mundo normal e entra no mundo das lutas, ou seja, deixa de ser só um cozinheiro tentando tocar um restaurante e passa a integrar uma equipe tentando encontrar o One Piece e desafiar as pessoas no topo do planeta, nesse processo o Sanji vai trazer consigo um estilo de combate dele, que ele já dominava, e que expressa os valores dele enquanto cozinheiro.

A maneira do Sanji lutar expressa que ele ainda é um cozinheiro, mesmo sendo pirata, pois revela que sua prioridade são seus valores de cozinheiro. Jamais machucar as mãos. Sem mãos não se cozinha. E qualquer evolução de combate pela qual ele passe por estar desafiando shichibukais, imperadores, almirantes e o escambau vai se adaptar a natureza da expressão de combate de Sanji. Então ele não vai parar de chutar pra fazer outra coisa agora que aprendeu Haki.

Dá pra fazer um contraste muito bom com como em um mangá como Katekyou Hitman Reborn por exemplo, ao aprender sobre as caixas especiais que eram o estilo de luta do mundo do futuro, os protagonistas todos tiveram que se adaptar e reaprender a lutar com essas caixas. Porém em One Piece quando chegaram em Skypiea, nenhum dos protagonistas precisou aprender a lutar com dials. O Usopp escolheu incorporar dials como um elemento secundário do estilo de luta que ele já tinha, e o resto nem se envolveu, só seguiu fazendo o que faziam.

Então não existe um conhecimento de batalha que te joga no mundo da luta em One Piece. Não é igual Hunter X Hunter em que todo mundo que domina o nen conscientemente é parte do mundo das lutas. Aqui existe mil conhecimentos de batalhas, todos muitos pessoais, a maioria deles criados por pessoas querendo se expressar fora do mundo das lutas. Os personagens não estão dominando um meta-game quando aprendem a lutar e determinando a maneira mais eficiente de usar a energia deles pra causar o máximo de dano. O Mr.2 Bon Clay luta que nem uma bailarina não pois é o jeito mais eficiente, mas pois é o jeito de sua identidade ser transmitida. E se ele se aposentasse do mundo das lutas seguiria lutando assim. 

Então se não é a exposição ao mundo dos piratas, nem o adquirir de um novo poder que puxam uma pessoa normal como um cozinheiro para o mundo das lutas, o que é? É a ambição. É o virar de chave que faz a pessoa parar de ver o espaço onde ela vive como tudo o que existe e o desejo de existir no planeta como um todo, sem se limitar pelas fronteiras de seu espaço.

A ideia de que viajar é preciso.

O que Sanji precisou pra sair do mundo normal e entrar no mundo das lutas foi ser convencido de que seu sonho de encontrar o mar lendário All Blue, onde todas as espécies de peixe coexistem, vale a pena, e que ele não deveria passar a vida inteira dentro do restaurante dele. Virar essa chave mental o jogou no mundo da luta. O mundo das lutas não é uma obrigação moral, ou uma responsabilidade deles perante seu poder. É uma mentalidade em busca de um estilo de vida que não é mais inválido que os outros é só compatível às suas ambições de vida.

Mas sob certa perspectiva. Como ele precisava ser forte pra defender o Baratie, vivia com outros cozinheiros guerreiros e enfrentava piratas e marinheiros, então ele já vivia em um mundo da luta menor. Que era um microcosmo.

Um bom exemplo disso é Wano.

Os Samurais de Wano são uma força guerreira admirável, mas a cultura isolacionista de Wano fazia eles ativamente evitarem ser parte do mundo, mesmo sendo exímios guerreiros, eles faziam parte somente da cultura de Wano. A exceção foi Oden, que teve muita ambição em explorar o mundo e se tornou um samurai que integrou o mundo das lutas e se uniu a duas das maiores tripulações piratas do mundo.

Então existe um mini mundo da luta dentro de Wano do qual os samurais e yakuzas faziam parte e do qual personagens como a O-Tsuru ou a O-Some ou mesmo a O-Toku não faziam.

No mundo de One Piece todo mundo luta.

Alguns são guerreiros competentes.

Mas em qualquer ilha podemos ver no mínimo o amadorismo de uma criança dando uma frigideira na cabeça de um pirata.

Pessoas comuns todas tem algo pra fazer diante de um pirata. Muitos personagens que vivem fora do mundo das lutas em One Piece andam armados pra poder apontar as armas pra piratas e ver a ameaça não dar em nada.

Muitas pessoas comuns tem algum conhecimento básico de combate.

Mas essa não é a principal maneira delas lutarem. Elas tem uma luta particular que essa os piratas não exercem em nada.

O povo que resiste vivendo.

A maioria dos reinos em One Piece estão vivendo em uma situação de opressão. O povo pode estar sendo oprimido pelo rei, ou o reino pode estar sendo oprimido por um bando pirata. Existem locais fortes, que sabem lutar e estão dispostos a lutas, mas ninguém tem muita esperança que dentro do país existe uma pessoa capaz de resolver a situação sozinha na porrada.

O povo está então esperando um herói, esperando algo acontecer, alguém que destrua o opressor e devolva a liberdade pro povo.

Mas apesar disso, o povo não é indefeso.

O mangá One Piece retrata que pra estar em um país de merda, mas ainda sim acordar, fazer o próprio trabalho, viver seu dia e voltar pra casa é algo que demanda um tremendo esforço, e muita força. Aguentar dia após dia, para no dia em que os tiranos forem embora, você estar vivo. Isso pode parecer “não fazer nada”, mas é algo muito difícil de ser feito.

Quero chamar a atenção para o arco Arlong Park. Na vila de Nami, todos aguentavam os abusos de Arlong com muita paciência, pois todos tinham esperança de que um dia Nami iria conseguir juntar o dinheiro pra comprar a vila de Arlong. Mas no dia em que essa esperança se foi, no dia em que ficou explícito que Arlong jamais permitiria que Nami atingisse o valor que ela queria, a vila perdeu a esperança. Então a vila pegou em armas, para ir atacar Arlong.

Porém os cidadãos da vila não achavam que iriam vencer Arlong. Eles só cansaram. Cansaram de resistir, eles estavam indo essencialmente se suicidar, desafiar Arlong pra serem mortos, mas morrerem lutando e resistindo. Indo morrer de pé pra não viver de joelhos.

Parece que enfim tomaram atitude, mas é o oposto, enfim quebraram. Enfim perderam qualquer resistência mental ou vontade de viver, e foram abraçar a morte. Foi onde eles oficialmente declararam derrota. Os oito anos em que eles tocaram a vida foram muito mais fortes do que isso.

“Se vocês sobreviverem, dias felizes virão”, são as últimas frases de Bellmére que lemos enquanto ela cai morta no chão, e os grandes valores que ela deixou pra trás. Ela deixou Nami viva, pra que essa tivesse a chance de ser feliz no futuro, por mais difícil que o presente fosse.

Uma situação semelhante ocorre em Alabasta, em que o ataque de Kohza ao palácio real é considerado por Toto e por Vivi como um suicídio, e considerado como menos Kohza esperançoso que vai salvar o país, e mais ele cansado de esperar a hora certa e indo pra um ataque final que enfim vai acabar com tudo. Eles estavam exaustos de resistir, então resolveram por um basta.

O próprio Kohza desencoraja essa visão de “eu vou com tudo e não tenho medo de morrer” na hora que uma criança vem com esses papos pra se juntar ao exército. E em determinado momento, Vivi consegue abrir os olhos de Kohza para reascender a esperança e tentar um cessar fogo.

O mangá constantemente insiste em diferenciar jogar a vida fora de apostar a própria vida. Os piratas em One Piece apostaram a própria vida, ou seja, eles miraram em um sonho ambicioso, um que soa inacessível e decidiram que a vida deles seria uma crescente em que só parariam de se aproximar desse sonho caso morressem. E como esses piratas tentaram de coração, eles podem rir com orgulho de terem dado tudo de si, mesmo se falharem.

Por isso tantos deles riem durante suas mortes.

É uma risada que segundo o mangá, você não consegue rir se não der tudo de si.

Mas só é possível se você tem motivo pra ter esperança.

É complexo, mas o Luffy estar sempre apostando a própria vida não significa que o Luffy deve ir de cabeça em batalhas de vitória impossível. Ele deve tentar viver. O Luffy tem essa energia de não recuar nunca, e por isso outros personagens já precisaram recuar o Luffy a força. Para ele poder viver e tentar de novo outro dia.

Para apostar a vida, a chance de um em um milhão precisa não só existir, precisa estar no seu campo de visão, você precisa estar mirando nela.

Se você não está mirando na chance de um em um milhão, se você não esta mentalizando o Davi vencendo o Golias, se você está meramente cansado de esperar a hora certa e preferindo morrer a mais um dia, aí não é uma aposta. É um abandono.

E o quão sutil é a diferença entre os dois, e o quanto vários personagens parecem estar na área cinza entre os sentimentos é algo muito forte na maioria dos conflitos dos habitantes das ilhas que Luffy visita. Uma raiva que estourou os limites da paciência e está pronto pra ir em uma batalha final.

O quanto essa batalha final tem uma perspectiva suicida ou de esperança depende de ilha pra ilha. O prefeito que desafiou o Buggy tinha uma vibe suicida. Mas o Kyros desafiando o Doflamingo tinha uma vibe de esperança. O Wiper usando Reject três vezes era um pouco dos dois, era um sacrifício pro povo dele ter esperança.

A sutileza da diferença pode ser vista em Arlong Park, quando o povo da vila, junto de Nami, decidem apostar em Luffy, oficialmente se afiliando a ele na frente de Arlong, sabendo que se Luffy perdesse eles iriam morrer.

A situação era a mesma, era um grande “se der errado eles morrem”, mas eles tinham mais espernaça em Luffy vencendo do que na marcha que eles estava fazendo até Arlong. É uma questão de ter esperança onde é possível.

Mas que conste. Eles se afiliam ao Luffy e fazem parte da luta, mesmo precisando ser protegidos. Eles não são passivos na luta.

Nojiko e Genzo salvam a vida do Luffy.

Kaya vai até a ladeira apontar uma arma na cara do capitão Kuro.

Dalton leva o bando do Chapéu de Palha até Wapol.

Esses personagens fazem o que podem, mas eles sempre podem fazer algo, mesmo que esse algo não seja subjugar o vilão através da violência. O povo dessas ilhas se conecta com Luffy, eles marcam uma aliança, que é simbolizada muitas vezes com eles dividindo comida, oferecendo uma casa, ou dando algum tipo semelhante de acolhimento aos piratas, e os piratas pagando de volta aplicando a capacidade de combate deles nos problemas da vila.

O povo não é passivo. Não só porque o povo também participa em alguma escala do combate, em posições de apoio, mas porque o ato de dar hospitalidade ao Luffy não foi um ato passivo. O ato de conseguir dividir o que se tem, mesmo tendo pouco, e de conseguir manter a solidariedade em tempos difíceis, é uma ação valorosa, uma marca da pessoa que resiste sem quebrar e sem sucumbir a pressão.

A marca de um verdadeiro herói.

E pode parecer que isso é intuitivo de se fazer, mas não necessariamente é. Pois por exemplo, quando foram adaptar One Piece pra live-action não fizeram.

O povo em One Piece Live Action:

Todo mundo sabe que quando a gente vai adaptar onze volumes de 200 páginas de um quadrinho, contendo 5 arcos diferentes de história pra uma série de…. Oito episódios, que não vai vir uma adaptação fiel. É imbecil esperar algo 100%. Assim como é impossível esperar 100% de fidelidade quando é um estadunidense adaptando uma obra japonesa. O mero fato dessa obra estar sendo vista por uma perspectiva do outro lado do mundo já torna ela diferente.

Mas o mero ato de adaptar implica fazer escolhas. E o fato de que você é obrigado a fazer uma, não significa que você não vai ter julgado pelo que escolheu. Pelo contrário, cabe a pessoa fazer uma boa adaptação e saber escolher.

E que conste, aqui nesse blog “mas é difícil fazer ficar bom”, não é desculpa para nenhuma escolha feita em adaptações. Pois vou ser sincero, eu não pedi pra ninguém fazer uma série Live Action estadunidense de One Piece. Ninguém foi obrigado a tocar o projeto por força maior. Quando eu vou no circo, e o trapezista fala que vai pular na corda bamba com um pé só enquanto faz malabarismo, eu consigo ver que é difícil, eu consigo ver que eu não faria melhor. Mas é muito obvio pra mim que a performance só vale a pena se ele de fato não cair. Se eu vou no circo e vejo o trapezista cair eu não vou pensar “pô, mas era difícil mesmo, mas valeu o ingresso, pois eu paguei pra ver a pessoa tentar só”.

Sou da opinião de que 8 episódios era pouco demais pra proposta da série, e quem pagou o pato foram os personagens que representam o povo. A maioria deles extremamente reduzido a um papel passivo, removendo a atividade que eu havia mencionado.

Isso dentre os que não foram completamente removidos, ou viraram uma mera participação especial.

Mas o grande ponto é como eles são tratados. Em desesperança. Sem nenhuma força de resistência dentro deles, e com a cabeça baixa de quem sabe que perdeu.

Isso é particularmente ruim nos cidadãos da vila da Nami, que não estando cientes de que Nami está tentando ajudá-los, não conseguem manter a esperança nela e fazer sua resistência silenciosa por Nami. Eles são só, os fracos e os oprimidos, o povo fodido que o Luffy precisa salvar.

E o Luffy vai e salva os desesperançosos.

Isso é algo que eu ponho muito na conta da história estar sendo revista na perspectiva estadunidense. Que tem uma tradição muito forte de pessoas excepcionais protegendo os fracos e oprimidos que não podem fazer nada por não serem excepcionais. E em manter essa separação. Com grandes poderes vem grandes responsabilidades e é responsabilidade de quem é excepcional ajudar os coitados.

Esse termo que eu estou usando “Os fracos e oprimidos”, foi cunhado pelo Superman, com o slogan em inglês de “Champion of the weak and the helpless”, e reforça essa dinâmica de poder, o povo está incapacitado e sem a capacidade de resistir, então uma pessoa grandiosa vai e salva eles.

Agora quando a gente vai no cinema ver um filme de super-herói, o filme raramente é sobre uma pessoa que o herói protege. Ou seja, dentre os personagens do filme raramente o filme vai criar um personagem original, que não existe nos quadrinhos, que não é parte daquela dinâmica de super-heroismo em sua rotina, e colocá-lo em uma posição de destaque na qual o Superman ou qualquer herói precisa protegê-lo. E no qual a grande história é sobre a vítima do vilão, e o Super-herói é um personagem ajudando o real protagonista.

A população anônima, com gratidão, admiração e irrelevância sempre está ali pra elevar que o herói é grande e foda por salvar eles. Mas a história nunca é sobre essas pessoas, nenhuma delas recebe nome ou destaque. Eles são irrelevantes. E isso não quer dizer que a narrativa é ruim por isso. É parte da estrutura, o quão anônimos e “qualquer um” eles são é parte do que torna o herói heroico. E qualquer destaque e sugestão de que a vítima é um personagem quebra a ilusão de qualquer um. Se um filme do homem-aranha perde tempo demais focando em uma criança, a internet já vai perder o ponto e especular sobre como ela deve provavelmente crescer e virar algum outro super-herói, pois do contrário, pra que dar destaque em gente não-excepcional?

Claro que isso tem que ser feito de uma maneira bem equilibrada pra não ser condescendente, afinal se a dinâmica entre o civil impotente adorando seu salvador celestial for escancarada demais, o público sente como falta de heroísmo e se revolta. O herói tem que estar mostrando uma conexão emocional com esse figurante, mesmo se a câmera não estiver.

Mas a verdade é que em 10 adaptações cinematográficas do Homem-Aranha pro cinema, a gente ainda não viu nenhuma em que ele cria um laço de verdade com as pessoas que ele salva, a menos que a pessoa seja a garota que ele beija. A gente nunca conhece de verdade quem são as pessoas dentro dos carros que ele puxa com a cerca. E nos filmes do Homem-Aranha em específico se a gente começa a ver demais a perspectiva de uma pessoa comum, isso é origem de vilão. Virar um vilão é a marca de deixar de ser esse fraco e oprimido insignificante pra virar alguém importante, um desejo que precisa ser desencorajado.

E eu acho que isso se transmite forte em One Piece Live Action, em que Luffy não forma uma conexão real com Boodle ou com Genzo. A história de suas cidades sendo atacada deixa de ser a história deles. E eles são rebaixados a vítimas de cabeça baixa, esperando o Superman.

Nos exemplos de mangás que eu dei, eu citei que é incomum esse tipo de personagem representando a vítima dificilmente vai aparecer na reta final da história, mas as que aparecem nos primeiros arcos, definitivamente seus arcos existem pra contar suas histórias. O Inari não foi uma passagem irrelevante na vida do Naruto, ele foi um amigo de Naruto, e o arco de Zabuza foi a história pessoal dele também, e mesmo que ele não tenha lutado contra Zabuza, ele lutou a própria luta que foi interna.

Não é incomum um mangá ou anime que exija mais agência, responsabilidade e disposição do personagem no papel da vítima que precisa de ajuda.

Não ser capaz de lutar com o vilão, não significa impotência.

Não é incomum também a premissa de um mangá todo ser uma pessoa que ao ser ajudada, agora trabalha pro protagonista poderoso e tem que aprender a fazer a parte dela sem saber lutar, gerando essa dupla dinâmica em que o herói está sempre sendo testemunhado por essa pessoa que ele salvou, que representa a perspectiva do povo comum e sobre quem a história realmente é.

Maneiras distintas que o entretenimento de países diferentes retratam o conceito de heroísmo, não por como o herói se porta, mas pelo quanto a história quer contar a história da pessoa que o herói salva.

E One Piece Live Action ativamente faz a escolha de não contar a história das pessoas que o Luffy salva. Uma escolha infeliz, pois tira do mangá o que ele tem de melhor.

Por exemplo, o impacto do arco mais recente, Egghead.

A mensagem de Vegapunk:

One Piece é uma história em que a verdadeira história sobre como o governo se tornou o governo, as guerras que ele travou e os ideais que ele representa são um segredo escondido da população. O governo faz muito esforço pra perseguir historiadores, apagar documentos históricos e manter o povo ignorante. E a política que forma o mundo é substituída pela percepção de que tudo aquilo é natural. As vontades do rei do mundo são chamadas de a vontade de Deus, fazem toda uma associação de direito divino com a nobreza que camufla o quão não é natural eles estarem na posição em que estão.

Na maioria das histórias sobre conspirações. Uma figura de autoridade tem que descobrir sobre a conspiração, para poder punir quem faz a conspiração. Mas no mundo de One Piece as figuras de autoridade, sejam elas mais ou menos morais, todas são parte de guardar esse segredo. Pois a única resposta apropriada a deixar de ser parte da conspiração, é abdicar de ser uma autoridade.

Muitos fãs acreditam que se Akainu descobrir a verdade ele vai se rebelar contra os Cinco Anciões e o Imu. Eu acho que a chance é de 50%, mas tem uma chance de não, pois ele já está ciente de que ele ativamente apaga evidências de uma conspiração. Mesmo se ele não tiver detalhes.

Até o Sengoku que é um cara razoável e decente, sabe demais e faz parte do problema.

Se a conspiração for descoberta o risco do Imu não é que agora a polícia ou um juiz vão poder fazer algo contra ele.

O risco do Imu é que o povo vai ficar sabendo. E quando o povo entende, o povo pode fazer algo. One Piece é uma história prometendo uma revolução, e o exercito revolucionário é formado por guerreiros experientes, mas também é formado por uma menina que vende leite na vila dela e nunca lutou antes.

Por isso me marcou muito que tenhamos dedicados tantos capítulos a isso, a mostrar que o Vegapunk ia contar alguns segredos pra humanidade, e muita ênfase foi dado nas pessoas ouvindo. A gente pode rever a Kaya, o Genzo, o Iceburg, a Rebecca e diversos outros personagens e lembrar que eles, eles são as exatas pessoas de quem era importante guardar o segredo.

Que assim como a história de Wano era também sobre a Tama, pois ela morava em Wano e tinha seus prórpios obstáculos e de seu jeito, conseguiu ajudar o Luffy a vencer Kaidou. Da mesma forma, a história geral de One Piece é sobre ela também, pois é sobre o mundo, e ela mora no mundo.

Todos eles moram no mundo.

Por isso eu acho que tem valor os vários capítulos que gastamos pra mostrar que a mensagem do Vegapunk está chegando até as pessoas mais distantes. E ver gente comum descobrindo o que realmente ocorre no mundo. É a confiança de gente normal no governo que sustenta o governo.

Os piratas, a maioria deles não sabe a verdade do mundo, mas sabem de podres o suficiente, sabem o que são os poneglyphs, sabem da escravidão, e sabem de alguns crimes de guerra. Claro que sabem, eles rodaram o mundo.

Mas as pessoas que não rodaram o mundo, elas importam, pois a crença delas é relevante. E a confiança delas no governo é o sinal de que a manipulação histórica do Imu deu resultado.

Os personagens mais fodas do mundo, como Rayleigh, Shanks ou Akainu, eles já sabiam de metade do que Vegapunk falou. E a gente, o leitor, sabia também. Mas o cidadão não sabia, e o fato do cidadão comum ter se tornado melhor informado quanto a origem de seu governo, foi tratado como uma reviravolta chocante que abalou o mundo.

De maneira que eu pessoalmente acho que poucos outros mangás do gênero fazem.

Em One Piece o povo defende o que é deles. As vezes em ataques planejados, as vezes em ataques suicida, mas eles defendem o que é deles.

E embora eu não ache que a Makino vai pular num barco e ir lutar contra os Dragões Celestiais na porrada… eu acho que a gente vai entrar em uma fase em que eles farão algo. Eles lutam pela ilha deles, vão lutar pelo planeta deles também. É o tipo de grupo que eles são.

Conclusão:

Eu, como todo nerd que se preze, já em algum momento brinquei com os amigos de “em qual desses universos fictícios você queria viver.” e essa é uma brincadeira escapista, a gente fala “eu queria viver no mundo de Jujutsu Kaisen” pra falar “Eu queria ser o feiticeiro mais poderoso do mundo e ganhar todo mundo” e imaginar que teríamos o melhor poder pra triunfar e avançar no mundo das lutas. Mas como vocês podem ver no meu texto sobre sistemas de poder, eu gosto de ver nessas brincadeiras uma escada pra gente pensar em como os mundos dessas obras é organizado.

As vezes eles invertem a pergunta e falam: “se você vivesse no mundo de Naruto você seria de que vila?”, e eu gosto de brincar “Eu não seria um ninja, eu seria um blogueiro em algum dos países que ia estudar pra concurso público.”. E se eu faço essa brincadeira com Naruto, eu obviamente falo de um personagem que nunca apareceria no mangá e jamais seria envolvido nos acontecimentos da história.

Mas se eu falo que em One Piece eu ia ser somente um blogueiro em algum dos quatro blues, estudando tentando arrumar emprego, eu ainda leio One Piece pensando que esse cara ainda existiria no plot. Não pra socar um almirante, mas como alguém que poderia se conectar com piratas. E como alguém que escutaria a mensagem do Vegapunk.

One Piece é um mangá famoso por ser grande, com mais de cem volumes e mais de mil capítulos e que embora esteja na sua reta final não temos como estimar quanto tempo e quantos arcos temos até seu final. E o tamanho da série de justifica pelo zelo que o mangá tem pra fazer essa história ser uma história de escala global. Quando Luffy encontrar o One Piece, o mundo inteiro vai mudar. E pro mundo inteiro poder mudar, o mundo inteiro vai ajudar Luffy a encontrar o One Piece.

E One Piece tomou seu tempo e seu espaço pra estabelecer quem é o mundo, dezenas e dezenas de países, cada um com sua população, pessoas normais. Que quando não estão vivendo suas próprias histórias em suas ilhas, podem aparecer reagindo as histórias do Luffy. Eu amo que tiveram duas histórias de capas só sobre eles admirando as recompensas da tripulação do Chapéu de Palha. E sempre que a história corta pra eles lendo o jornal.

E é um grupo diverso de pessoas, algumas que lutam outras que não.

Algumas que cometem crimes outras que aplicam a lei local na ilha.

Algumas plantam tangerinas, outros plantam outras coisas.

Alguns fazem barcos e odeiam o governo. Alguns são oprimidos, mas querem se afiliar ao governo e mudar as coisas de dentro do sistema.

Alguns são reis, alguns abdicaram dos privilégios reais pra viver uma vida humilde.

Alguns são pessoas de um senso ético ímpar, e outros são pessoas desprezíveis indignas de respeito.

Alguns acharam o amor, outras realizaram seus sonhos sem nenhum romance neles.

Alguns sujaram as mãos e cometeram crimes injustificáveis, mas ainda querem o bem do mundo.

E o mundo de One Piece é de todos eles. One Piece contou a história dessas pessoas, e mesmo depois que Luiffy sai da ilha delas, segue contando a história dessas pessoas. E vai contar de mais pessoas ainda.

E o Imu senta no trono vazio acreditando que o mundo inteiro e a vida dessas pessoas pertence a ele.

E personagens como o Teach aparentam querer ter o que o Imu quer, e serem os reis desses planetas, tomar o mundo pra si.

Mas o Luffy não quer ser o rei do mundo, ele quer que todo mundo seja livre. Ele luta por todas essas pessoas. Ele protege todas as pessoas que ele gosta. Ele salva elas, e faz o que estiver em seu alcance pra garantir que todo mundo que ele ama está satisfeito com como a situação acabou.

Mas ele não acha que fazer isso torna ele um herói. Pois ele não está dividindo comida, essas pessoas foram quem dividiu comida com Luffy. O Luffy acha que ele está salvando os verdadeiros heróis do mangá.

E isso é a marca de uma história que dá poder real pros personagens que representam o povo. De uma maneira que honestamente, é muito raro outro mangá de lutinha fazer igual, não importa o quão elaborado seja a construção-de-mundo, dificilmente vai conseguir por os holofotes nesse tipo de personagem.

E isso não significa que esses outros mangás são ruins, só que One Piece está fazendo algo especial, que mais que justifica e paga de volta o tamanho colossal da obra. E eu queria que tivessemos mais obras colossais que tratassem o povo da maneira que One Piece trata.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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