ALERTA DE SPOILER: Esse texto contém spoiler pra cacete de uma cacetada de filmes, dos quais eu destaco: Inception, que será debatido em detalhes. e também: Joker, The Wrestler, Black Swan, El Laberino del Fauno, 12 Angry Men, Pirates of the Caribbean: At World’s End, The Twilight Saga – Breaking Dawn Part 2, How to Train Your Dragon, Memento, Who Framed Roger Rabbit e Jaws. Além de usar imagens das cenas finais, que mesmo sem contexto podem incomodar alguns. São esses os filmes: Blade Runner, The End of Evangelion, Knives Out, The Fight Club, Kill Bill, Life of Pi e Sunset Boulevard. Leiam por conta e risco, blablabla, os avisos tradicionais que a Cultura do Spoiler tornam necessários.
Sabem o que me irrita? Pra cacete? Quando eu abro o youtube e temos um vídeo com o seguinte título:
MAIS RECENTE BLOCKBUSTER – ENDING EXPLAINED
E em 95% das vezes o mais recente blockbuster é um filme que não teve o final nem um pouco ambíguo ou confuso. Pelo contrário, o filme se explica direitinho em sua reta final.
E bem, eu sei, que esses títulos são clickbaits, de canais que realmente precisam otimizar seu número de views, com um sistema de monetização cada vez mais difícil no youtube, e que tem muita gente daora que realmente quer ganhar a vida nisso, e uma vez clicando no link, as vezes o vídeo é menos “explicar o final”, e mais uma análise real do filme. De fato o The Take, um canal que eu gosto bastante, faz muito vídeo bom com o título Ending Explained. Eu entendo tudo isso….
…mas foda-se. Virou uma praga. Virou uma praga e está fora de controle.
Eu não sei, eu sinto que nossa relação com filmes está gradativamente pior. O cinema está em uma crise criativa pesada, com cada vez mais filmes sendo reformulações de franquias existentes em vez de tentarem criar algo novo. O cinema está em uma crise artística, com projetos autorais terem cada vez menos espaço num overload de franquias. Então se estamos criando menos e abrindo menos espaço para criadores, o que a gente menos precisa é de um público não conseguindo entender as poucas coisas que são criadas sozinho.
Eu pessoalmente não gosto de explicar finais, embora as vezes seja necessário ressignificar o que o final REALMENTE quis dizer. Mas assim, eu me recusei a explicar o final de LOST nesse blog, mesmo sabendo que provavelmente ia me dar mais views do que comparar a série com The Good Place.
Então venho usar esse canal, para ensinar todo mundo a pescar, e ver se param de dar o peixe. E os conteúdos online dão uma renovada. Venho aqui com um guia para poder entender o final de qualquer filme.
Dito isso, não garanto qualquer filme, temos filmes confusos de verdade, Donnie Darko, End of Evangelion, 2001: A Space Oddissey qualquer coisa do David Lynch… tem muita gente que sabe explicar esses filmes, mas eles requerem um real esforço de interpretação. Isso é um guia para entender filmes normais.
Isso em particular deve ser começado, tentando entender o que torna os filmes confusos, em primeiro lugar.
Lição 1: Se o fim é ambíguo, é porque a informação ambígua não importa.
Ei, ei, ei. No fim de Inception, o DiCaprio está acordado ou sonhando? A resposta para essa pergunta é: isso não faz a menor diferença.
Se fizesse o filme teria mostrado.
Geralmente um filme em sua última cena, termina sem você ter certeza se uma coisa é X ou Y.
Randy Robinson morreu ou não no seu último pulo? O que vai acontecer com Tony Soprano? Não precisamos saber a resposta dessas perguntas, para entender a história, pois a história não existe para nos responder elas, mas sim para nos dar contexto para entender porque essas perguntas estão sendo feitas.
Achou confuso? Bom, eu falei sobre isso na minha análise do filme It Follows que pode ser lida aqui.
Mas agora eu vou me repetir falando de Inception.
E a famosa cena do pião.
Em grande resumo, se o pião cair ou não cair fosse ser alguma resposta para algo, ele teria dado uma resposta concreta. A gente se induz a pensar que entender se as crianças que Cobbs viu no fim do filme eram reais ou um sonho era muito importante….
…mas não era nem um pouco importante. E o motivo pelo qual não é importante é porque o Cobbs não achava essa informação importante no final do filme.
E a gente descobre, quando ele gira o pião, mas não confere o resultado do giro. Ele dá as costas ao seu pião e vai abraçar as crianças. Se elas forem um sonho, ele vai abraçar um sonho, e tudo bem. Isso estaria bem.
Cobbs passou o filme inteiro tentando achar paz. E passou o filme inteiro tentando ter certeza a todo momento do que era realidade e do que era um sonho. Essa tentativa eterna de ter sempre certeza se originou do trauma de Cobbs de quando ele e Mal perderam a certeza depois de passar muito tempo sonhando, e essa falta de certeza culminou no suicídio de Mal.
E isso fez de Cobbs um paranoico. Traumatizado pela noção de não ter certeza.
E ao longo do filme ele cura essa paranoia, enfrentando o resquício de Mal que existe em seu subconsciente.
E bem, quando ele reencontra os filhos, ele gira o pião e não olha. Ele não quer mais ter certeza, ele quer abraçar os filhos, e nesse momento não importa mais se é ou não um sonho. Ele está vivendo aquele momento e isso é tudo o que importa.
E isso é um bom ponto de partida para a maioria dos finais ambíguos.
Se a cena gera incerteza para nós, expectadores, verifiquem se ela gera uma incerteza semelhante para os personagens. Se gerar, o efeito dessa incerteza na conclusão do arco do personagem é mais importante do que a sua teoria que dá certeza para a incerteza.
Então não é sobre se Randy Robinson morreu na luta. É sobre ele saber do alto risco de morte, e ter decidido lutar mesmo assim. E embora não tenhamos certeza se ele morreu ou não nessa cena específica, sabemos que ele vai correr esse risco toda vez, pois ele prefere isso a ficar fora das lutas, e que eventualmente, uma dessas lutas vai ser a final, pode ser essa ou a próxima, mas ficou claro como ele vai encerrar sua vida. Randy resolveu viver no limite da morte para fazer o que faz sentido pra ele. Esse é o filme.
Agora, essa incerteza ser o ponto do arco de um personagem absolutamente não significa que a sua teoria que decupou cada frame de Inception para provar que a cena não é um sonho e o pião caiu não tem valor, nem que o diretor, Christopher Nolan não estava deliberadamente te atiçando a formular teorias.
Filmes tem, ou, pelo menos, deviam tentar ter, valor em ser reassistidos. Uma história boa deveria soar boa quando revisitada. E filmes com um lore como o de Inception, te convida a tentar pegar informações sutis que não percebemos nas primeiras, segundas, terceiras, quintas, décimas assistidas. E tirar disso informação, e tirar dessa informação a “história dentro da história.” E essa história dentro da história é sim uma puta recompensa pro fã que devorou o filme, e é digna de ser comentada e exposta. E é super foda quando achamos.
…mas ela não é o filme.
Ou melhor dizendo, entender o filme não é entender essa história dentro da história. Entender o filme, geralmente é realmente entender a história da superfície mesmo. A história dentro da história montada por quem pegou cada detalhe discreto, essa não deve ser a resposta para se dizer que “entendeu o filme”. Pois o filme deve tentar também ser entendido na primeira assistida. Um bom filme, precisa ser possível de ser entendido de primeira (o que não é o mesmo que dizer que ele precisa ser entendido de primeira por alguém que viu na má vontade, com o celular na mão e deliberadamente não prestou atenção em cenas chave).
Lição 2: A história de um filme é um período de tempo e espaço que mudaram alguma coisa.
Vamos nos manter em Inception para um exemplo. E nos fazer a seguinte pergunta: qual é a história de Inception?
“Ah é sobre o Cobbs, e ele foi chamado para fazer um riquinho lá achar que teve uma ideia pois esse milionário japonês pagou o Cobbs pra isso, e se o Cobbs conseguisse ele iria rever os filhos.”
Sim, isso é uma resposta válida e correta. Mas também é específica. Colocando em termos que depois podem ser aplicados para outros mil filmes se necessário:
“É sobre um cara chamado Cobbs, que tinha essa especialidade lidando com sonhos que ele fez um trilhão de vezes no passado. A história é sobre essa uma missão, que ocorre no tempo de uma viagem de avião, que foi a missão mais importante da vida de Cobbs, pois fez ele reavaliar os valores que regeram seus últimos anos de vida.”
A história de qualquer filme, é o que acontece entre sua primeira cena e sua última cena. E essas duas cenas vão demarcar um período da vida dos personagens. Período que pode ser literalmente a uma hora e meia que acompanhamos. Ou dias, ou meses, ou anos, ou a vida literalmente inteira deles. Mas é um período de tempo realmente específico.
Halloween se passou durante um dia de Halloween. Um dia específico que marcou a vida de Laurie Strode e Michael Myers. Os eventos desse dia carregarão significado para esses dois personagens pelo resto de suas vidas.
Jurassic Park se passa durante o pouco mais de um dia também, que é o tempo que durou a visita do Dr. Alan Grant, da Dra Ellie Satler e do Dr. Ian Malcolm na ilha Nublar. E essa visita dividiu a vida desses personagens em um antes e depois.
12 Angry Men é sobre a uma hora e meia em que 12 jurados discutiram para rever os motivos que os faziam acreditar que um jovem era culpado de um crime em que não haviam provas o suficiente. A maioria desses personagens repensaram muito de suas visões de mundo nesses minutos e saíram daquela sala pessoas diferentes do que entraram.
Forest Gump foi sobre as cinco primeiras décadas de vida de Forest Gump, e a marca que essa pessoa singular deixou em todos que cruzaram suas vidas, e os vários destinos que ele mudou.
Histórias são sobre mudanças. E falo de mudanças no sentido mais genérico da palavra. Mudanças podem ser discretas.
Martin Brody superou seu medo do mar.
Quem muda pode ser o personagem principal.
William Turner entendeu que sua vocação não é a de ser um ferreiro, igual o homem que o criou, mas sim ser um pirata, igual seu pai. E com isso toda uma mudança filosófica a respeito do maniqueísmo com o qual ele via o mundo e o ódio que ele tinha de piratas.
Eddie Valiant recuperou seu senso de humor, perdido com a morte de seu irmão, fez as pazes com os desenhos e com isso conseguiu enfim se reaproximar da mulher de sua vida.
Ou quem muda pode ser alguém que o personagem principal afeta com suas convicções.
Os onze jurados repensaram muitos de seus valores com suas interações com o jurado número 8, que em si não mudou.
Andy Dufresne mudou muito pouco na prisão. Ele era um homem inteligente, bom e honesto e continuou sendo. Mas ele conseguiu colocar esperança dentro de Red que havia sido completamente quebrado pelo sistema prisional.
Hiccup refez as estruturas que regem Berk com uma nova mentalidade.
E o já mencionado Forest Gump sem perceber impactou um número grande de pessoas que impactaram o mundo.
As vezes várias dessas mudanças ocorrem, as vezes só uma delas, cada filme é seu próprio exemplo.
Mas o que todas essas mudanças têm em comum é: elas não começaram antes da primeira cena, o evento catalisador para essa mudança acontece depois da primeira cena. As vezes logo depois, as vezes bem depois, mas a mudança não começa antes do filme.
Se você quer realmente entender um filme que te deixou extremamente confuso no final. Se faça a seguinte pergunta “qual desses personagens é uma pessoa diferente do que era quando o filme começou? O que mudou? E como os eventos do filme causaram a mudança?” a resposta para essas três perguntas é o filme. E com isso, vocês entendem um monte de filme com fim confuso. Com isso dá para entender Birdman, falo com tranquilidade.
Ah sim, e importante, existem também exemplos em que a mudança não existe, e entender o quanto a situação não mudou é o ponto. Um filme como Memento, em que o fato de que o personagem repetirá aquilo que ele tem feito como uma constante é uma tragédia e a não-mudança de nada reforça o tamanho da tragédia. Mesmo em um filme em que nada muda, a falta de mudança é o ponto.
Lição 3: Presuma que toda cena importa:
Até agora eu falei de filmes como se filmes fossem uma expressão artística feita por artistas que querem passar mensagens e conteúdo para além de um entretenimento barato genérico pautado em fórmulas. Então vamos mudar isso, vamos falar como se filme fosse uma indústria, um puta comércio organizados por empresários engravatados que não entendem nada que não seja apresentado para eles em forma de números.
Filme…. É um bagulho caro! Caro pra cacete! Duas horas na sua frente. 2880 fotos que foram exibidas na sua frente e que custaram milhões de dólares.
Get Out? 4,5 milhões de dólares.
1917, quase 100 milhões, para fazer um filme de guerra cuja relevância e impacto não sobreviveu para além da corrida do Oscar.
Star Wars Episode IX Rise of Skywalker, quase 300 milhões, para fazer um filme que ninguém gostou.
Isso é tudo muito dinheiro, é mais dinheiro do que eu sou capaz de fazer ao longo de toda a minha vida. E todo elemento da produção é uma torneira de dinheiro indo embora.
Vão refazer o Sonic? Lá se vão milhões de dólares.
Tem que reeditar o filme? Lá se vai dinheiro.
Cena extra? Lá se vai dinheiro.
Você tá vendo um filme e de repente percebeu que um personagem com cinco minutos de cena é na real a Sigourney Weaver, porra, a Sigourney Weaver não é barata não, esses cinco minutos foram uma cena que custou dinheiro pra cacete.
Onde eu quero chegar? Simples, muito pouco em um filme é acidental e não cumpre uma função.
Toda cena de um filme custou dinheiro para nascer sendo pensada pelo roteirista. Depois colocaram mais dinheiro para um monte de profissional pensar em como ela deve ser. Depois custou mais dinheiro para ser filmada. E depois que ela já tinha sido o motivo para uma grande quantidade de dinheiro ser gasto, alguém pagou um editor para explicar para ele se aquela cena devia ou não entrar no filme.
E ela entrou.
E se alguém não fizesse questão de que ela entrasse, teria sido mais barato nem fazer ela em primeiro lugar, e os executivos preferem assim.
Mas ela entrou.
E portanto, pros envolvidos ela importa.
Então se um filme como Wonder Woman faz em pleno coração da primeira guerra mundial, entre duas grandes batalhas cheias de ação, que é essencialmente o que fez os público-alvo pagar o ingresso, resolveu colocar uma cena dos personagens conversando sobre as visões de mundo, nacionalidade e guerra deles na frente de uma fogueira. Bom, essa cena custou muito dinheiro para existir, porque alguém achou que era importante ela estar lá. E se essa cena não é um instantâneo fanservice com tudo o que você, expectador queria ver no filme, e mesmo assim está lá, então é provavelmente porque essa cena é fundamental para entender o que o filme está querendo dizer.
Acha que a cena em Batman v. Superman com o Superman encontrando uma alucinação do pai no meio da montanha pra ouvir um causo do dia que a fazenda inundou foi parar no corte final, pois todo mundo adorou o personagem do Jonathan Kent no Man of Steel e estava implorando pra ver ele de volta? Não? Então ela está ali para passar alguma coisa. Algo que eu identifiquei na missa dissecação em duas partes do filme.
Não só nessas cenas.
Apareceu um personagem lendo um livro conhecido? Esse livro precisou de burocracia e direitos para poder aparecer no filme? Então ele não foi escolhido ao acaso, ele foi escolhido deliberadamente, e a chance dele ter uma rima temática com o filme é altíssima.
Um dos personagens está assistindo a um filme? Vemos cenas que permitem identificar exatamente que filme está sendo assistido? Esse filme específico custou dinheiro para ser mostrado e foi mostrado de propósito. A chance de ser porque o autor achou que ele faz um diálogo com o filme que estamos vendo é muito alta.
Um dos personagens está assistindo uma aula em que ele não está prestando atenção, mas nós podemos ouvir? Bom, a menos que tenham chamado um comediante para fazer improviso na cena, a chance do roteirista ter aproveitado esse exato gancho para fazer a aula ser especificamente sobre aquilo que é o tema do filme é gigante.
Aquelas cenas em It Follows, da menina de óculos de repente parando tudo para ler um texto creepy pra cacete sobre a consciência da mortalidade? Aquilo ali não foi filmado por acidente. Está lá para contar uma parte do todo. E se essa parte não é o plot em si, essa parte é um auxílio ao tema do filme.
Quer entender “mas afinal do que o filme está falando?” pega as cenas mais chatas do filme, aquelas que definitivamente não são o momento em que ninguém tá empolgado nem hypado, mas mesmo assim tem gente falando e preste bem atenção no que está sendo dito, a chance da resposta que você procura estar ali é bem alta. Porque os produtores não são burros, eles sabem quais são os picos catárticos do filme e quais são as cenas maçantes que ninguém dá bola, eles estão brincando de fazer isso têm muitas décadas.
Lição 4: Presuma que o máximo possível de cenas não são alucinação:
Um fenômeno que me frustra muito é o do cara que viu o filme, e o filme é sobre um personagem mentalmente instável, e por isso em determinada cena ele tem uma alucinação de algo que não é verdade. E o cara instantaneamente conclui que se aquela cena não era real, então talvez inúmeras cenas não sejam reais, talvez nada seja real, talvez o final não seja real, talvez o filme inteiro não seja real.
Se parece que eu estou olhando pra galera que acha que a cena do Joker pintando o sorriso de sangue não é real, é porque eu estou.
Mas não só Joker, gente, Black Swam sofreu disso. Lighthouse sofreu disso. Filme pra cacete sofre disso.
E aí o filme instantaneamente é promovido ao patamar de filme confuso, uma vez que não temos como saber o que é real ou o que não é.
Pois aqui vai um segredo bom para sabermos.
Um número muito pequeno de roteiristas vai fazer o pilar emocional da história não estar acontecendo de verdade, e geralmente vai ser gente que vai ficar incrivelmente mal falada por isso. Querem um bom exemplo? Breaking Dawn Part 2. Em que descobrimos que a guerra épica entre o bem e o mal não foi anda além de uma alucinação.
Não é interessante fazer suas cenas mais importantes não serem nada além de uma alucinação. Aquelas que eram uma alucinação tiveram importância por serem uma. Mas se a série não te disse nada… sério, só presuma que é o que de fato aconteceu.
O Guilhermo Del Toro teve que explicar oitenta vezes já que o Fauno existia e a Ofélia não tava alucinando. Mas o pessoal insiste que não, era tudo brisa dela. E aí chega um ponto interessante que é pra mim o divisor de águas.
Esperemos sempre na dúvida, a alternativa mais interessante.
O fauno, o reino mágico, as fadas e a aventura serem os delírios de uma criança lidando com o complicado mundo dos adultos e do fascismo é uma interpretação interessante, que nós sentimos inclinados a acreditar. Porque de fato, é uma ótima história de se ouvir, levemente melhor do que genuinamente ver o reino existir. O contraste entre a fantasia da aventura de Ofelia e a triste realidade da política espanhola se pesam com a sugestão de que talvez seja puro escapismo de Ofelia. E essa interpretação, que reforço, é subjetiva, pode deixar o filme mais poderoso para alguns.
Porém, acreditar que as cenas finais de Joker não existiram não agrega nada ao filme. Apenas faz você deletar da existência as cenas que você não curtiu no filme. Mas nada muda nele, exceto que a história fica completamente sem climax e sem final. A noção de que Arthur não se tornou o Joker de verdade, e não conseguiu quebrar sua invisibilidade não melhora o filme.
Quando questionado sobre o final ambíguo da série Watchmen, o gênio-da-televisão Damon Lindeloff respondeu sobre como na visão dele, o final não é ambíguo, pois uma das opções seria incrivelmente desinteressante, narrativamente falando. E que ele teria curiosidade em ouvir porque quem acredita na outra opção, acharia esse um desfecho legal. E eu não gosto de falar que existe um jeito certo de ver um filme, mas eu acho esse o jeito certo de ver um filme, presuma que a opção mais interessante é a que está rolando. Filmes devem ser interessantes, seu interesse é subjetivo, então faz parte da experiência você projetar um pouco dessa subjetividade, tente entre duas alternativas, ver a que te fascina mais. Espere o melhor, e nos momentos que pedem para você conectar os pontos, tentar conectar os pontos que vão te trazer mais satisfação. O que é a definição de ter boa-vontade.
É literalmente um dos temas de The Life of Pi.
Então, quando vemos Nina Sayers cair sangrando após sua performance, em vez de imediatamente comprar o blefe “como eu sei se ela está machucada de verdade?” como o espertalhão cínico escrevendo o roteiro para um cinema sins da vida, se pergunte “a história fica melhor caso ela não esteja machucada?” e se a resposta for não, então tire da cabeça querer projetar uma alucinação que o filme não está apontando. Arrendondemos pra cima, e tenhamos boa vontade.
A gente não vai ver essas coisas para ficarmos putos de propósito.
E mesmo quando deixa de fato a história melhor, lembrem-se, o Del Toro reforça sempre que pode. O bendito Fauno era real sim! O que reforça muita coisa. Que a maioria dos diretores quer que o que eles estão mostrando seja encarado como real. Mas também lembra que o autor e o expectador podem discordar, e o filme é o que você tirou dele. A voz de Deus não é absoluta, e filmes muitas vezes passam mensagens que seus autores não queriam passar, mas foram passadas mesmo assim, e que sério, você não tá aqui para odiar, se possível escolhe a mensagem que você mais gostou.
Dito isso, todo mundo tem um limite, eu pessoalmente tenho dificuldades de arredondar pra cima mensagens, quando nazismo é um dos temas. O que me fez ter problemas com elementos de Jojo Rabbit que pra muita gente, inclusive muita gente daora e de ótima opinião, não foi um problema. No fundo o filme é um diálogo seu com o filme, e suas reações são suas.
Mas isso não é o mesmo que dizer, que o que ele disse que ele colocou no filme não tem valor nenhum, porque tem. Então questionar é legal, mas questionar é o que fazemos depois de ouvir, e ouvir o que ele tem a dizer a respeito é relevante. E isso tudo no fundo é parte de se interessar pelo filme. As vezes tem filme que você não entende só por não se interessar, e isso não é um problema necessariamente. Mas aí também não é questão de você entender, mais, deixa de ser o trabalho do filme.
Lição Final: Na dúvida, no fim tudo é sobre a última cena.
Ok, isso é uma meia-verdade, afinal um filme tem muito mais do que seus últimos momentos. Mas ao mesmo tempo… não.
Tem quem ache que um filme é essencialmente sua última cena, que ela deve ser uma cena que te faça pensar “ok, é para isso que eu paguei meu ingresso”, e todas as outras cenas são na verdade algo que dá o contexto para deixar a última cena melhor. Eu acho que isso se aplica a alguns filmes, definitivamente se aplica ao que foi meu filme favorito de 2019, Knives Out, que eu acho um ótimo exemplo do que essa afirmação aponta. Mas tem filmes que não.
Mas mesmo em filmes que não seguem essa lógica, é importante pensar. Em “por que essa história acabou aí.” ou melhor dizendo “por que depois desse momento, não existe mais história?”
Lemony Snicket, escritor da popular série A Series of Unfortunate Events, transformou sua série best-seller em um grande estudo de caso sobre onde parar uma história, em que ele explica a diferença entre final e desenlace e lamenta que muitas histórias decidam parar no desenlace e não no seu final.
Segundo Snicket. Um desenlace é um momento em que todas as pontas soltas da série se conectam, e é o ponto de maior tensão de toda a história. E o final, é quando de fato aquilo que ia ser dito foi dito e não sobrou mais nada para dizer. Ele exemplifica com o exemplo cômico da Branca de Neve, em que ele afirma que o desenlace da série é o momento em que os anões matam a bruxa má, e depois o príncipe beija a Branca de Neve, revivendo-a e eles se casam. Mas o final é o momento em que Dunga sozinho na floresta apaga uma fogueira com um balde de água e volta pra casa. Deixando para nossa imaginação qual a relevância dessa fogueira.
E ele aplica sua teoria na prática separando desenlace e final em dois livros diferentes. O 12ª Livro da série The Penultimate Peril é o desenlace da série, uma reunião de todos os personagens auxiliando com suas experiências que ocorreram nos livros o que é certamente a batalha final entre Olaf e os órfãos Baudelaire. Porém depois desses eventos, os órfãos abandonam o local e vão parar em uma ilha com o Conde Olaf onde não rola um último enfrentamento, mas uma… enorme reflexão do que significou tudo o que eles passaram.
Um livro inteiro que conclui tudo o que a série representou, e mostrou exatamente qual foi a mudança de chave na vida dos órfãos que fez a história deixar de ser a história deles e portanto não precisar mais ser contada.
E apesar da crítica de Snicket, isso muitas vezes se aplica aos filmes. E entender o que a cena final está dizendo é uma maneira de entender o que o filme inteiro está dizendo.
A última cena logo antes de subir os créditos, é um ótimo lugar pra procurar entender o filme. O que tem nela. Não é incomum ter uma rima com o primeiro frame do filme, as vezes é completamente diferente do primeiro, mas é ali, que sabemos que tudo o que precisava ser mostrado foi mostrado, e que a única coisa que falta é subir os créditos.
A desilusão no rosto do personagem do Tomy Lee Jones, em No Country for Old Man, a satisfação de Beatrix Kiddo em estar abraçada com sua filha, Os vaga-lumes se misturando às estrelas em The Princess and the Frog, ou a visão do planeta Terra disfarçado entre outras estrelas ao final de Cloud Atlas, nesses momentos você vê a alma do filme inteiro. E geralmente elas tem pouco a ver com quanta tensão foi gasta no climax, mas amarram tudo o que os personagens viveram na nossa frente.
Mais que entender o que vai acontecer depois do final, é tentar pensar em “porque esse final foi a escolha para concluir essa história.”
E é essencialmente isso.
Digo, isso é o que dá para passar de genérico, para podermos aplicar com qualquer filme. O resto seria muito específico.
Mas falando sério. Eu sempre quis que o Dentro da Chaminé, fosse mais que um lugar para se buscar informação, também um lugar onde eu pudesse falar um pouco de como eu me comunico com as mídias que eu consumo e incentivar outras pessoas a fazerem o mesmo, a buscarem consumir mídia de maneira menos passiva e a refletir no que se assistiu.
E todas as pessoas são livres para não fazerem o mesmo. Ninguém aqui está ditando uma regra mais do que eu meramente fazendo um convite.
Mas eu fico chateado com como eu sinto que a relação das pessoas com os filmes está se moldando. Da geração cinemasins, que desmerecem filmes com base em “tal detalhe não fez sentido”, ignorando toda uma questão de linguagem que existe por trás. A uma imprensa especializada que cada vez mais vive de clickbait, e dá voltas enormes para fingir que hype barato e apontar referências é notícia. A merda do Oscar que anualmente seleciona os filmes menos inovadores do ano para prestigiar enquanto esnoba aqueles que realmente inovaram.
Outro dia tava conversando com uns amigos sobre a opção de potencialmente vermos filmes em velocidade acelerada na Netflix, e como eu imagino que tem muitos elementos de linguagem que se baseiam no ritmo do filme e que essa alteração danificaria muito da proposta. E uma das respostas foi de que isso não era importante, pois o filme era um amontoado de informação, e se a informação pudesse ser captada era tudo que importava. E nossa esse comentário, me deixou bolado.
E quando eu vejo vídeos de análise, alguns muito bons, se vendendo como “Ending Explained”, para poderem ganhar os cliques que pagam as contar em um mundo hostil como é a monetização do youtube, eu me pergunto, quanto disso não deriva justamente do desejo do público que clicará de só querer absorver a informação do filme com eficiência, para entender o assunto e poder opinar nas modinhas da semana, em vez de realmente ter um diálogo com o filme.
Em que entender se o pião está de pé ou não tem menos a ver com sua relação com o filme, e mais a ver com você sentir que captou a informação correta. Que foi um teste e você passou.
Talvez seja a maneira normal de consumir mídia na era da internet e o estranho sou eu. E talvez seja um modo de tentar coletivizar a experiência agora que ver um filme é mais individual do que nunca.
Mas fico pensativo.