The Greatest Showman – Por que em 2017 estamos romantizando P. T. Barnum?

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Feliz ano novo, meus caros leitores. Espero que tenham passado um bom dezembro com boas festas. E bem-vindos de volta ao Dentro da Chaminé que nesse mês comemora seu terceiro ano de existência. 2018 começou e sabem o que é que começa também em 2018? Ah sim, a temporada de premiações de filmes, e a corrida para o Oscar. A 90ª Cerimônia dos Prêmios da Academia vai acontecer no dia 4 de Março de 2018, e antes disso teremos Globo de Ouro, Prêmios do Sindicato, BAFTA, tudo culminando numa temporada de prêmios. O que significa, que esses primeiros meses do ano são o momento em que o cinema começará a estrear todos os Oscar-Baits, os filmes que estão tentando desesperadamente concorrer a esses prêmios. E isso significa que vai ser uma época de filmes biográficos.

OscarRace

Filmes biográficos e dramas inspirados em histórias reais são disparadamente o gênero favorito dessas premiações. Nas últimas oito cerimônias do Oscar, 24 filmes que sejam ou biografias de pessoas reais ou dramas inspirados em pessoas reais foram indicados ao prêmio de “Melhor Filme”, e três venceram. Isso equivale a um terço dos indicados. É visivelmente um tipo de filme que se destaca nessas horas. E bem, sabem qual é o grande lance dos filmes biográficos? Com suas figuras famosas, seus relatos que vão ser julgados pela sua fidelidade e seu retrato de uma década que já não existe mais? Então, o grande lance deles é que boa parte deles são sobre a época em que o filme estreia.

Por exemplo, o filme The Queen saiu em 2006, falando sobre a morte da Princesa Diana, ou mais especificamente, do conflito ideológico que aconteceu entre a Rainha Elizabeth II e o Primeiro-Ministro Tony Blair sobre como a morte da princesa e seu status de realeza deveriam ser tratados. Por coincidência, no ano de 2006 estava acontecendo uma coisa chamada Guerra do Iraque, uma guerra da qual a Inglaterra participou. O Primeiro-Ministro que levou a Inglaterra à Guerra foi Tony Blair e a Rainha Elizabeth foi contra a entrada da Inglaterra na guerra. Portanto, dado o contexto desse atrito entre a Rainha e o Primeiro-Ministro era cinematograficamente interessante mostrar outro atrito que eles tiveram dez anos antes. Especialmente se o filme vai tomar a perspectiva da Rainha, e não a perspectiva do cara que entrou na guerra.

TheQueen

Na mesma pegada. O filme Lincoln saiu em 2012. E o filme não foi sobre a vida inteira de Lincoln, ao invés disso se focou no esforço que foi pro presidente ter a aprovação do congresso para a 13ª Emenda, que aboliria a escravidão nos Estados Unidos. O filme foca muito no quão polêmica era essa lei na época, e quantas pessoas alegavam um dano imenso na economia dos Estados Unidos, e pôs um foco grande na curiosidade de que esse filme aconteceu pouco depois de Lincoln ser reeleito. Pois bem, 2012 também foi o ano em que um cara chamado Barrack Obama havia sido reeleito. E o grande foco que ele estava enfrentando na presidência na época, era a tentativa de fazer seu plano de saúde pública nos Estados Unidos ser aprovado. Uma medida polêmica com os conservadores dos Estados Unidos sendo contra, por ser uma lei que pode causar danos para a economia do país. Vejam só, que coincidência? Nisso, o filme defende Obama, o comparando a Lincoln e comparando a polêmica de hoje com uma lei que no século seguinte será vista como fundamental. Mas sem falar isso diretamente, só lembrando de uma história do passado.

Lincoln

Em 2001 o atentado às Torres Gêmeas em Nova York serviu como pretexto para George W. Bush lançar os Estados Unidos na Guerra ao Terror, e com isso veio uma coisa chamado The Patriot Act, que permitia ao governo violar inúmeras liberdades civis sob o pretexto de encontrar terroristas e alimentar o medo da população de novos ataques para conseguir cometer diversos atos antiéticos contra o povo. Em 2005 surge um filme chamado Good Night, and Good Luck, sobre como o senador Joseph McCarthy em 1953, usou o medo da população do terrorismo para conduzir uma caça às bruxas e violar diversas liberdades civis, incentivando o povo a suspeitar dos vizinhos e denunciar atividades suspeitas. O que o colocou em conflito direto com o jornalista Edward R. Murrow.

GoodNightGoodLuck

Em 2016 saiu o filme Jackie, que conta sobre como foram para Jackie Kennedy os quatro dias que seguiram o assassinato de seu marido, o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy. Jackie foi uma das mais famosas e populares primeira-damas que o país já teve. Naquele mesmo ano, uma outra notória, famosa e aparentemente não-tão-popular primeira-dama Hillary Clinton tinha uma expectativa grande de que fosse se tornar a primeira Mulher Presidente dos Estados Unidos. E relembrarmos a força de outra primeira-dama no mesmo ano não era uma coincidência. Mas Jackie não foi indicado ao Oscar de melhor filme (só de melhor atriz) assim como Hillary perdeu a eleição para Donald J. Trump.

Jackie

Nesse mesmo Oscar, o filme favorito pra ganhar, mas que ultimamente perdeu era um filme musical chamado La La Land. Nesse ano eu escrevi em meu medium pessoal sobre o filme (mas não aqui, pois na prática falava sobre o contexto em que o filme saiu, mas não realmente analisava o filme em si, então não achei que tinha a proposta do blog). E em grande resumo, falei sobre como o filme parece inocente e provavelmente foi feito com inocência, mas passava um sentimento nostálgico que era particularmente perigoso naquele ano, pois foi o mesmo sentimento nostálgico que trouxe Donald Trump ao poder. E que isso devia ser levado em conta na hora de dar prêmios, não era um ano que a nostalgia devesse ser celebrada por pessoas que entendessem minimamente de poder simbólico. Pois nem mesmo acidentalmente, não devemos celebrar a presidência de Trump.

Felizmente Moonlight ganhou esse Oscar e impediu um ato simbólico bem feio por parte da academia. Pena que eles não tenham a mesma noção na hora de lidar com o sexo feminino e com o que fazer com atores e diretores que cometem assédio sexual. Mas estou divergindo demais do ponto.

MoonlightWins
Cerimônias de Oscar costumam ser maçantes e chatas, mas essa compensou na reta final. Que dia para se ver televisão ao vivo. Fantástico.

O ponto é que o nome disso é zetgeist, o fantasma da época, ter a noção de pra onde os ventos do momento estão soprando e quais são os filmes e histórias que fazem sentido de serem contadas nessa época. E filmes biográficos Oscar-Bait operam muito no zetgeist.

O que finalmente que me leva ao fato de que a primeira grande biografia Oscar-Bait dessa corrida já estreou, se chama The Greatest Showman e é uma romantização não-muito-fiel-a-realidade da carreira de um homem chamado P. T. Barnum. Um homem que não é muito famoso no Brasil, imagino que boa parte da audiência brasileira não tenha ouvido falar. Mas que foi um homem genuinamente famoso nos EUA, onde boa parte da audiência já conhecia o mito por trás do homem antes de ver o filme.

BarnumBaileyCircus
Um dos motivos pra isso, é que o Ringling Bros. and Barnum & Bailey Circus, o Circo que ele monta no final do filme, existiu até o ano de 2017, quando ele fechou suas portas depois de 146 anos aberto, por enfim ter parado de ser capaz de se sustentar com o povo parando de ir ao circo. O filme já estava sendo filmado quando a notícia do fechamento do circo saiu. Era um dos circos mais famosos do planeta, podendo ser comparado ao Cirque de Soleil e ao Circo de Moscow, e até o final levou o nome de Barnum.

P. T. Barnum é um homem conhecido como um dos maiores larápios que os Estados Unidos já teve. Um golpista e um mentiroso de marca maior, que fez uma fortuna mentindo pras pessoas. A frase “Nasce um idiota a cada minuto.” é erroneamente atribuída a ele. Ele nunca disse isso, assim como Marie Antoniette nunca disse “Que comam brioches.”, mas o fato de que desde o século XIX as pessoas acham que ele disse, deixa bem clara qual é a imagem que as pessoas têm dele. Outras contribuições que ele deu ao imaginário popular é a de que inspirado nele que foi popularizado o estereótipo do dono de circo cruel, ganancioso que trata mal seus empregados. Inclusive, no filme da Pixar: A Bug’s Life, o dono do circo dos insetos é uma pulga cruel e gananciosa chamada P. T. Flea. Quando alguém menciona P. T. Barnum, geralmente é para apontar para um enganador lazarento e egoísta que toma o dinheiro e não se importa com as pessoas que ele ilude e mente.

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Calloway
O personagem Amos Calloway do filme Big Fish, foi interpretado por muitos como uma homenagem a P. T. Barnum. A primeira coisa que o personagem faz quando aparece na série é dar um contrato de “servidão involuntária” a um gigante.

No ramo psicologia existe um termo chamado “O Efeito Barnum”, que é o que ocorre quando pessoas ouvem descrições genéricas que poderiam se aplicar a metade das pessoas do mundo, e acreditam que são descrições precisas que se aplicam especificamente a elas. O que é o que os críticos de advinhos, videntes, cartomantes e astrologia usam para explicar como elas iludem as pessoas. De homenagens em filmes, a termos psicológicos, P. T. Barnum transformou seu nome em sinônimo de tapeação. O Efeito Barnum também pode ser chamado de Efeito Forer.

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Pois bem, P. T. Barnum, foi o dono de um dos primeiros circos dos Estados Unidos (o primeiro tecnicamente foi criado por um brother chamado Bailey que ia se tornar sócio de Barnum para criarem o lendário circo que durou até maio do ano passado), praticamente criou o conceito de “freak show” no país, e depois de um tempo como um grande mestre de cerimônias e showman, ele foi pra política, chegando a ser prefeito de Bridgeport em Connecticut. E seu status de mentiroso ganancioso lazarento e egoísta que se envolveu na política, permitiu que de uns tempos pra cá ele tenha sido muito comparado a Donald Trump. Que em 2016 se tornou o 45º Presidente dos Estados Unidos e uma pessoa muito comentada.

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Seria fácil dizer que as comparações estão fortes agora por conta do filme, mas ano passado e retrasado elas já estavam fortes.

E o que não faltam são pessoas que comparam Trump com Barnum. E dizem que ele é o P. T. Barnum do século XXI. Samuel L. Jackson disse que Trump é “Mais um P. T. Barnum do que um político.” E como Trump reage a essa comparação? Ele abraça. Ele não se ofende em ser considerado o novo P. T. Barnum, porque ele não vê vergonha nenhuma na imagem de P. T. Barnum, ele explicitamente diz que P. T. Barnum é o que o país precisa. E bum, é eleito presidente.

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E um ano após a sua eleição, aparece esse filme sobre P. T. Barnum que modifica significantemente diversos fatos de sua vida, omite todas suas maiores polêmicas e foca no lado inocente e sonhador desse homem, romantizando completamente a figura histórica e dando uma imagem que é o oposto da imagem que o povo tem gravado na cabeça. A de um homem que fez o bem, trouxe integração e humanidade e riso para o país, foi sonhador, viveu seu momento e empoderou minorias. E de quebra fez disso um grande musical com a trilha feita pelo mesmo pessoal que fez La La Land. Aquele filme que eu disse um ano atrás que inconscientemente evoca no público os mesmos sentimentos que elegeram o Trump.

E aí eu solto a pergunta: é coincidência? Que um ano depois que um homem que os críticos identificam como um novo Barnum, e que identifica a si mesmo como um novo Barnum, é eleito como o homem mais poderoso de seu país, um esforço cinematográfico é feito para limpar a barra de Barnum, e transformar sua imagem em uma imagem positiva? Pois eu acho óbvio pra cacete que esse filme serve de escada política pro Trump da mesma forma que Lincoln servia pro Obama. Se eu acho isso proposital por parte do Hugh Jackman que tentou por sete anos fazer esse filme decolar? Não. Mas os produtores que esperaram o fim de 2016 pra de fato fazer esse filme começar a caminhar, definitivamente. Em 2016 os ventos ficaram bons para um filme do Barnum.

TheGuardian
No Brasil ainda estamos comendo mosca quanto a isso, mas nos EUA, muitos críticos já notaram o quanto esse filme que estreou dialoga com Donald Trump. Você pode ler a crítica inteira do The Guardian aqui.

O que é triste, pois eu amo filmes musicais, já escrevi aqui no blog sobre o quanto eu acho eles geniais narrativamente, e acho frustrante pra cacete que os dois grandes musicais cinematográficos dos últimos tempos tenham me soado como auxílio político acidental pro Trump.

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E aos que dizem “Mas são só musicais, é só dança e música, eles não são políticos.” eu recomendo que pesquisem o impacto que Hamilton, um musical inteiro em viés político teve na Broadway. Musicais são tão políticos quanto filmes normais.

Mas então vamos analisar um pouco esse filme, porque se fosse só pra concluir que o filme é uma grande propaganda pró-Trump eu escreveria isso no meu Medium.

O filme é levemente inspirado na história real de Phineas Taylor Barnum, e nossa, que hipérbole eu fiz aqui. O filme pega a base de tudo o que sabemos de Barnum, e modifica todo o resto que não sabemos para algo bonito. Eu acho notoriamente improvável que o filme tenha sido escrito sem absolutamente nenhuma pesquisa ter sido feita sobre o sujeito. E por isso, tudo o que diverge da realidade, divergiu por uma escolha da parte dos roteiristas, e escolher por uma divergência não é ruim. Mas é proposital, e foi feito com um intuito. Então vamos ver quais as mudanças e qual o intuito delas.

P. T. Barnum: Quem era e o que fazia?

E isso já começa logo na escolha de elenco. A coisa mais famosa pela qual Barnum é lembrado hoje é pelo seu circo nos Estados Unidos. Mas ele fundou o circo aos 60 anos e só foi conhecer Bailey com quem fez sua famosa parceria aos 70, enquanto ele começou sua carreira como showman e pilantra aos 25 anos, tendo um belo intervalo de 35 anos trabalhando até no começo de sua terceira idade ele fundar o circo, e o filme tenta condensar o mais relevante de todos esses 35 anos em eventos que aparentam durar alguns meses, no máximo uns poucos anos.

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Pois bem, no filme ele é interpretado por Hugh Jackman, que estava pra fazer 49 anos enquanto gravava, e em quem não foi feito nenhum esforço para que ele ganhasse o visual de Barnum. Afinal, Barnum estava longe de ser o homem mais lindo de Nova York (embora eu não fosse chamá-lo de feio) e o Wolverine é um dos super-heróis mais sexualmente desejados do cinema, então pra que enfeiar um galã desses se podemos só fazer o próprio Barnum soar mais como um galã.

O filme ignora fatores centrais sobre a vida de Barnum. Ele fala muito sobre Barnum negligenciando sua esposa Charity Barnum em prol do sucesso de seu circo, sendo que nessa época, Barnum era viúvo de Charity, e inclusive se casou com outra mulher pouco depois de abrir seu circo.

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A família Barnum é condensada no filme para facilitar. Ao invés de quatro filhas, no filme Barnum teve somente duas.

Uma das mensagens centrais do filme é a da importância da família, de não afastar a família em prol dos negócios e de dar prioridade à família. Pois bem, apesar disso, a família de Barnum pareceu um elemento bem passivo na história, existindo só como suporte emocional, e como um elemento na vida de Barnum que podia ser perdido e que portanto ele tinha que lutar pra manter. Quando na realidade, eles eram mais unidos e participativos no circo que isso. A filha de Barnum, Caroline, era extremamente envolvida no trabalho do pai e segundo relatos, se vestia da cantora de ópera Jenny Lind e saia do teatro para ser perseguida pelos fãs permitindo a original sair de seu show em segurança. No filme, o papel de Caroline se resume a fazer aulas de balé com apresentações que o pai não pode ir por estar muito ocupado e aquele velho clichê de sempre.

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Todo ano um filme que ensina a valorizar a família mostrando um pai que perdeu a apresentação de balé da filha, pois estava ocupado trabalhando. Também serve perder o jogo de baseball do filho.

O filme tem duas cenas musicais de viradas positivas na vida de Barnum acontecendo no bar, com copos se enchendo de cerveja no ritmo. Quando ele convence Phillip Carlyle (uma pessoa que na vida real nunca existiu) a se tornar seu parceiro nos negócios, e quando os membros do circo o ajudam a ter a epifania de que glória e fortuna não é tudo, o importante é a família (tanto sua literal família, como a família que ele formou com os membros do circo). E em ambas as cenas, muita bebida sendo ingerida, e copos voando magicamente até mãos, e viva o bar. Apesar disso, Barnum era fortemente contra o alcoolismo. Em sua vida política ele lutou pra proibir o consumo de álcool, e ele proibia as pessoas de ingerirem álcool em seu circo, proibia os integrantes do circo de beber álcool mesmo quando não estavam em serviço, e fazia tours pelo país só pra explicar os malefícios do álcool. 

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O que me deixa cabreiro. Pois sério, o cara foi um militante muito ativo pelo não-consumo de álcool em sua cidade, e não é possível que ninguém envolvido na produção saiba disso. Então o que rolou é que eles sabiam e não ligavam, pois esteticamente as duas cenas no bar são do caralho (e são mesmo, ó, eu estou falando mal do filme pelo seu viés político e por limpar a barra de um homem que poderia ser um dos maiores mascotes do capitalismo e de tudo de errado nele, mas porra, o fã de musical dentro de mim ficou muito feliz e satisfeito com o filme). Então é um filme que está mais preocupado em como ele se parece do que com o que foi realmente o circo do Barnum. Não tentar nos mostrar quem o homem era, mas usar o poder de seu nome e as informações mais famosas dele como escada para um grande espetáculo (pois sério, esse filme teria 1/3 do seu sucesso se fosse sobre alguém que ninguém conhece, e não uma figura que ronda o imaginário americano como o Barnum). O que não é errado, mas torna aquele “True Story” que aparece em todo trailer desonesto pra cacete. Mas vamos voltar a esse ponto.

Relações raciais no filme:

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Vamos lá. P. T. Barnum foi uma figura que fez boa parte de sua vida profissional como figura pública durante o período da Guerra Civil Americana. Ele chegou a se encontrar pessoalmente com Abraham Lincoln pra fazer uma apresentação e tal. Ou seja, o filme se passa em uma época nos EUA em que as relações raciais estavam a flor da pele. E P. T. Barnum definitivamente nunca ficou de fora do assunto.

P. T. Barnum começou sua carreira exibindo Joice Heth, uma escrava idosa cega e paralítica que ele comprou por cem dólares, depois que já era ilegal vender escravos em Nova York, se aproveitando de uma brecha na lei (lembrando que o norte era contra a escravidão, mas a escravidão em si não havia sido abolida nos EUA, que demorou pra isso rolar). Ele mentiu pras mídias que ela tinha 160 anos e havia sido a mammy (em grande resumo: ama de leite, vai ter um link mais abaixo sobre estereótipos racistas para quem quiser mais detalhes) de George Washington. Foi o primeiro espetáculo que ele armou, e colocou seu nome no mapa, vendendo ingressos e ingressos pra pessoas poderem ver uma velha escravizada que nem podia se mexer direito. Quando os ingressos começaram a se esgotar, o malandro do Barnum plantou um boato pela cidade de que era mentira, e que ela era na verdade uma máquina realista o suficiente pra ser confundida com uma velha de verdade, e todo mundo que já tinha pagado pra ir ver a Joice de perto pagou outro ingresso pra ir ver a coitada. Quando ela morreu, Barnum transformou a morte dela em atração também, orquestrando uma autópsia pública pra confirmar se ela tinha mesmo 160 anos, e cobrando ingressos de quem quisesse ver a Joice ser dissecada por especialistas (que concluíram que ela tinha 80 anos). Foi um grande exemplo da desumanização completa que os escravos sofriam nos EUA mesmo no norte do país.

JoiceHeth

Sério, esse lance de enfiar pessoas negras no museu pra um bando de branco vir olhar seu corpo me deixa mal pra cacete. Tipo rolou com a Saartjie Baartman. Puta bagulho pesado. Além disso, dissecar uma pessoa em público só pra cobrar pelo “espetáculo”? Tenso. Enfim,  foi essa a grande entrada de Barnum no entretenimento.

Depois disso, ele se envolveu muito com minstrels, que são espetáculos americanos de dança, música e humor onde começou e se propagou o blackface, que estava presente em todas as apresentações do estilo e Barnum administrou muitas apresentações com uso forte de blackface e estereótipos racistas (se quiser aprender sobre os estereótipos racistas, mammys e os minstrels, clique aqui). Porém com um twist, apesar de todos os estereótipos, os personagens negros de Barnum essencialmente satirizavam o homem branco e seu falso senso de superioridade. Semelhante a uma peça em que os personagens são empregados pra criticar os patrões. Ele de fato incluía diversos negros em suas apresentações, assim como o pessoal que se apresentava em seu circo era muito etnicamente diverso, mas fez muitos desses negros interpretarem nativos canibais envolvidos em magia negra, reforçando estereótipos sobre tribos africanas e associações dos negros com a incivilização e pecado que perduram até hoje.

E futuramente em sua vida política, ele foi um dos mais vocais defensores da abolição da escravidão e da aprovação da 13ª Emenda. Sendo um militante claro pelo fim da escravidão. “Uma alma humana, que Deus criou e pela qual Jesus morreu não é algo com o que se possa brincar. Seja o corpo de um chinês, de um turco, de um árabe ou de um cói. É uma alma imortal.” é o que ele disse.

Um homem que começou sua fama explorando e desumanizando uma senhora escrava até depois da morte sem nunca dar a ela qualquer humanidade, usou tanto estereótipos racistas pesados quanto criticas sociais aos brancos em seus espetáculos, e foi pra defensor ferrenho do fim da escravidão e da igualdade entre as raças, tudo isso na época em que o país estava em guerra civil por conta do assunto, acaba se tornando um coringa histórico que pode ser pintado da forma mais conveniente pela pessoa que o retrata. Você pode falar dele como um racista hediondo omitindo algumas partes, ou falar dele como um anti-racista heroico omitindo algumas partes. The Great Showman escolheu não conectá-lo ao assunto at all, omitindo todas as partes.

Mas isso não significa que o filme não aborda raça. Aborda, mas…. Bem discretamente, tão discretamente que usa termos como “you” e “us” para se referir a raça todo o tempo só dando o nome aos bois em uma única cena, onde um termo pejorativo é a única menção à raça negra feita no filme. Se não tivesse abordado e ponto, passaria, mas por fazer uma abordagem tão leviana em um filme passado em uma época onde esse era um dos grandes assuntos da época, fica feio.

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Vocês viram Gangs of New York? Então a última meia hora de Gangs of New York e a última meia hora de The Great Showman retratam o mesmo acontecimento na mesma cidade, o grande incêndio que o Museu de Barnum sofreu. Vejam como relações raciais e políticas em relação à Guerra Civil estavam a flor da pele em Gangs of New York.

E no The Great Showman, o que falaram? Já que falaram algo.

Tem quatro cenas no filme inteiro que nos lembram que o filme se passa em um contexto de extremos conflitos raciais. O primeiro quando Barnum está contratando as pessoas excêntricas pro seu show e surgem pra entrevista de emprego dois irmãos trapezistas, D.W e Anne Wheeler. Os dois são negros e eles advertem Barnum que o público não vai ficar feliz de vê-los como astros. Barnum responde aos dois que está contando com isso, mostrando sua filosofia de que ele não acredita em má publicidade e que ele acha que as pessoas também pagam pelo que as revolta.

Após isso, começa um romance entre Anne e Carlyle, o parceiro aristocrata de Barnum. Pois bem, o romance que desencadeia entre eles vê o seguinte obstáculo: as pessoas vão olhar feio pra eles, e Anne não quer que olhem feio pra ela ou que Carlyle tenha vergonha dela. O que se mostra em duas cenas, nele soltando a mão dela quando vê que uns velhos ricos estão vendo ela de mão dada. E quando os pais de Carlyle chamam Anne te “the help”, termo pejorativo usado pra se chamar faxineiras e empregadas domésticas (e você achando que o filme sobre as empregadas tinha esse nome porque a Emma Stone ajudava elas… já vi várias pessoas cometerem esse engano).

NoShame
“Você não tem vergonha?” “Pai, o mundo está mudando e me recuso a fazer parte do seu.” Lembrando que o filme é pré-abolição, minha gente.

Mas bem, isso lembrando, era antes da escravidão ser abolida, com Anne sendo uma mulher negra livre e assalariada (embora Barnum certamente pagasse a ela bem mal). Iam demorar pelo menos um século só pro relacionamento dela com Carlyle não ser ilegal. Não tirando o demérito do quão pesado o insulto era pra Anne, mas era literalmente o menor dos problemas de Anne. A Ku Klux Klan estava nascendo nessa época, tinham setores da sociedade que iriam matá-la só por ser quem ela é, em especial ela sendo livre. Vergonha não é a palavra que melhor representa o risco que cabia a ela começar publicamente um relacionamento com Carlyle. Isso podia seriamente terminar em morte.

O que culmina no climax do filme, a quarta cena, uma multidão raivosa ataca o circo, querendo que ele tire da cidade os “freaks” e os “spooks”, sendo spooks um dos infinitos termos racistas que existem nos EUA. O pessoal do circo e a multidão lutam e isso coloca fogo no circo.

BarnumFire

O filme não quis abordar questões raciais pesadas, muito embora Barnum tenha se envolvido com essas questões e feito sua parte em lados ideologicamente opostos da questão. O filme também não quis não abordar questões raciais, nos dando esse mínimo possível e jogada segura.

O que nos leva a questão: por que o filme não simplesmente se omitiu de questões raciais? São questões polêmicas e podem fazer um diretor ficar pisando em ovos em um filme. Esse é um musical feliz com música e dança, porque não optaram por só não tocar no assunto e boa? Porque resolveram tocar no assunto e fazer esse mínimo possível?

LettieLutz

Porque o filme queria apesar de tudo ter um apelo empoderador para minorias. Para isso, o filme apesar de tocar no assunto discretamente em relação aos personagens negros, ele aborda o assunto diretamente para os “freaks” do circo de Barnum, onde o conflito entre eles e o povo remete diretamente a imagens que temos de como era o racismo nos Estados Unidos, com multidões e tochas, ataques violentos aos freks e o discurso de “quero essa gente fora da minha cidade.”

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RacistsProtests

Apesar de muitas das estrelas do show de Barnum serem pessoas de circo que existiram de verdade, como o General Tom Thumb que genuinamente se apresentou no palhaço de Buckingham em frente a Rainha Vitória, ou os gêmeos Cheng e Eng, que por serem do Sião, a condição deles de estarem conectados pelo fígado passou a ser chamada de gêmeos siameses. Porém a personagem que servia de porta-voz para todos os integrantes do circo (pois a maioria ficou no plano de fundo sem sequer ter diálogos), era uma personagem pseudo-nova. A mulher barbada original Annie Jones foi substituída pela personagem Lettie Lutz. E o motivo central pra mudança da personagem (o único que eu consigo imaginar pra terem mudado até o nome), é que Annie Jones é branca e Lettie Lutz não. Porém a não-branquitude de Lettie nunca é abordada no filme, diferente de Annie e D.W, o seu papel no filme de porta-voz das minorias se deve pelo fato dela ser a mulher barbada.

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Pois bem, temos essa cena em que Barnum demonstra uma clara vergonha de ter seus empregados dentro de uma festa de elite com os mais ricos de Nova York e os proíbe de ir na festa. E Lette revoltada e ofendida canta a música “This is Me”, que aliás, aposto minha frota de navios naufragados no mar da China que vai ser indicada ao Oscar de Melhor Canção Original (mas se ganhar de Remember Me de Coco aí vai ser uma marmelada da porra, só indicação já está ótimo). Enfim, ao som de This is Me, Lettie e os demais integrantes do circo invadem a festa de elite e mostram que nenhum deles tem vergonha de ser quem é, e que vão fazer questão de ocupar os espaços sim. Vão se fazer ver e quem não goste que se foda, pois eles são eles e não terão vergonha disso. Uma música bem empoderadora, e com o potencial de fazer pessoas que pertencem a diversos grupos discriminados se identificarem. E bem, isso é da hora, não é?

Mais ou menos… a primeira vista sim, mas vamos ver mais de perto.

Na literal mesma cena de Barnum expulsando a mulher barbada da festa, temos essa cena dele humilhando seus sogros, para dar o troco. Os sogros de Barnum o humilharam por ser pobre e agora ele era mais rico que eles. A esposa de Barnum que não era tão fã assim dos próprios pais e sempre tomou o lado de Barnum nessas brigas não entende porque Barnum fazia questão de esfregar seu sucesso financeiro na cara dos sogros. E o filme explica: “Quem nasceu rico não tem ideia do quão importante pro pobre é ficar rico.” Tanto para Barnum que foi convidado para a uma festa de elite para a qual ele não seria convidado no passado. Quanto para Lettie Lutz que invadiu essa festa pra mostrar que ela tinha direito de estar naquele espaço. Para ambos aquele espaço era um símbolo de exclusão da sociedade, e eles faziam questão de estar ali. E aí entra a música This is Me.

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A invasão da festa.

O filme bate na tecla do empoderamento, e de que ao final, todas as pessoas do circo que se sentiam excluídas pelo mundo acharam seu lugar e sua família entre si, e perderam a vergonha de serem quem são ou de serem julgados pelo público.

BarnumLettie
“O mundo tinha vergonha de nós. E aí você colocou os holofotes na gente. E nos deu uma família.”

O problema é que empoderamento é uma faca de dois gumes. Por um lado é uma coisa extremamente positiva, principalmente por dar uma auto-estima forte a grupos da sociedade que sofrem de uma opressão fodida, e onde casos de depressão e doenças psicológicas são comuns pra cacete. Além de ter um peso todo simbólico que incomoda e inquieta os grupos opressores e isso é ótimo. Mas por outro lado, o empoderamento, com seu grande foco em individualidade e ascensão social, pode ser também uma grande arma para deixar minorias confortáveis com o capitalismo e com seus efeitos. Em especial no caso do racismo, em que o racismo e o capitalismo são cúmplices e um ajuda o outro a se manter, essa é uma maneira de fazer essa conexão desaparecer na visão de mundo daqueles que lutam pelo fim do racismo.

A filósofa Nancy Fraser escreveu sobre a conexão entre o neoliberalismo e esse tipo de empoderamento em um artigo sobre a vitória de Trump nas eleições: “Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à “financeirização”. Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideais como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média. (…) Aliás, conforme sugerido pelo último item, o ataque à segurança social foi reinterpretado por meio de um discurso emancipatório carismático, emprestado dos novos movimentos sociais. Ao longo dos anos, à medida que o setor industrial ruía, o país ouviu falar muito de “diversidade”, “empoderamento” e “não discriminação”. Ao identificar “progresso” com meritocracia, em vez de igualdade, o discurso igualou o termo “emancipação” à ascensão de uma pequena elite de mulheres “talentosas”, minorias e gays na hierarquia corporativista exclusivista. Esta compreensão individualista e liberal de “progresso” gradualmente substituiu o entendimento de emancipação mais abrangente, anti-hierárquico, igualitário, sensível às questões de classe e anticapitalista, que prosperou nos anos 1960 e 70.”

O que não significa que a mensagem da música seja ruim exatamente. Significa que ela é uma faca de dois gumes que precisa de contexto para ser celebrada. E qual é o contexto do filme? Uma celebração de um dos grandes símbolos do capitalismo que os EUA já tiveram e do homem que está passando hoje sua cartola para o Donald Trump. E com esse contexto, pode-se ver que é o caso ao qual Nancy Fraser se refere. Barnum permitiu à Lettie Lutz que ela brilhasse no palco, e é de pessoas como Barnum que pessoas como a Lettie ou que os Estados Unidos precisam hoje.

BarnumThumb
“Todo mundo é especial, e ninguém é igual a ninguém. É essa a moral do meu show.”

Apesar de P. T. Barnum ser extremamente associado a exploração de pessoas diferentes, tendo sido o homem que lançou o conceito de “Freak Show” nos EUA, e também associado a crueldade com animais, e a todos os conceitos de mestre-de-cerimônias-maligno, aqui no filme ele é um herói que deu aos “freaks” os meios para se empoderarem se destacando no showbiz. O espaço dado aos “freaks” ofendia a população que nasceu sem nenhuma malformação genética, e eles faziam grandes protestos contra essas pessoas no show de Barnum. Os “freaks” ofendiam muito mais do que os negros no filme, e geravam multidões de pessoas em frente ao circo de Barnum querendo expulsá-las da cidade.

Isso meio que aconteceu na vida real, mas em uma escala muito menor do que o filme descreve e tinha um caráter mais moralista. Haviam protestos acusando o espetáculo de Barnum de ser uma “casa de pecado”, e um “lugar bizarro” mas sem o discurso “tirem esses caras da minha cidade.”. Eles achavam que o “freak show” tornava o circo de Barnum um local sem moralidade. Mas era menos tochas e menos ódio direcionado à mulher barbada. Annie Jones nunca gerou protestos por ser a mulher barbada, e ela fez muita militância pelo direito de membros de “freak shows”, incluindo lutou pra acabar com a palavra “freak” (o que ela não conseguiu), e mesmo assim não era exatamente uma pessoa que as pessoas iam bater na rua. Mas Lettie Lutz é uma pessoa odiada pelo público. E uma mulher de cor. Mas eles não estão atacando ela por não ser branca e sim por ser a mulher barbada. Em plena guerra civil. Estão vendo o que eles estão fazendo aqui, onde querem chegar? Não tem coragem de falar de raça diretamente, então esquivam se questões históricas de racismo, mas tratam os membros do circo como se fossem negros para poder passar a mensagem otimista e empoderadora de que o sucesso no showbiz é a arma para vencer a opressão.

Torches

White Supremacists March with Torches in Charlottesville
Esse bando de branco de tochas ameaçando com violência a mulher barbada e o homem-tatuado te lembram alguma coisa?

Ao final o maior crítico de Barnum explica que apesar de não gostar do show, ele respeita Barnum por colocar pessoas diferentes do lado dele no circo como iguais. Como se Barnum não se hierarquizasse em relação ao pessoal do circo e que isso era uma grande “celebração da humanidade”. Que ele fazia. Pois é. É isso aí. “Freak Shows” eram celebrações da humanidade, e faziam as pessoas perceberem que elas eram todas iguais.

Então vamos para a última parte que o texto já está enorme.

O senso ético de Barnum:

NoblestArt

P. T. Barnum nunca negou ser um enganador canalha e ganancioso. Ele era uma figura bem transparente em relação ao seu caráter nesse sentido. Ele inventou o conceito de “filantropia lucrativa”, que era essencialmente a noção de que a motivação do lucro era um belo incentivo para fazer o bem para as pessoas próximas dele e por isso ele fazia. Pois bem, e o que Barnum argumentava para justificar seus métodos mentirosos e sua falsa publicidade é que ele pode não entregar para o público o que ele prometeu, mas ele tem que entregar ao público algo que valha seu dinheiro.

Não entrando no mérito de se ver uma velha paralisada e sofrendo abusos é algo que vale o dinheiro de um ingresso que supostamente deveria ser para encontrar com uma pessoa que viu a história do país se construir com os próprios olhos… não vamos debater valores e se o que ele entregava pelo que prometia de fato valia o dinheiro, vamos presumir que valia sim. Pois o ponto em que quero chegar é que Barnum, usava desse lema de “entregar ao público algo que valha seu dinheiro” para atacar outras pessoas que tentavam lucrar com enganações. Levando ao tribunal e provando fraudes de diversas pessoas como mediums e cartomantes por enganarem o público, se colocando em um local supostamente mais moral, por dar ao público algo em vez de só tirar seu dinheiro.

WilliamMumler
Um deles foi William Mumler, que tirava fotos dos fantasmas de entes queridos das pessoas perto delas. P. T. Barnum foi capaz de replicar uma dessas fotos de espíritos pra provar sua fraude, e testemunhou contra Mumler no tribunal, o acusando de tirar vantagem do luto das pessoas.

O filme retrata esse lado de Barnum mais ou menos. Barnum afirma que o público genuinamente se divertiu e que os “risos” são reais, e por isso a mentira não importa. O que obviamente não se aplicaria ao Barnum de verdade, afinal, um cartomante ou um medium pode oferecer conforto, esperança e ajudar no luto de pessoas de maneira real, mesmo que através de mentiras. E poderia usar o mesmo argumento, mas Barnum ajudou a destruir carreiras mesmo assim. Atacando espantalhos de “mentirosos amorais” para se destacar como um “mentiroso moral”.

Muito muda no conceito de “minto pra te atrair, mas te entrego algo sólido e fantástico.” pro conceito de “minto pra te atrair, mas te fiz rir, então de boa.”, principalmente levando em conta de que o conceito original casa com o tipo de espetáculo que Barnum fazia no filme, com números genuinamente fantásticos realizados pelo pessoal do circo. O que mais muda, no entanto, é o sentido de que quando você entrega algo diferente, mas com um suposto mesmo valor do que o que você prometeu, você enganou a pessoa, mas não tirou vantagem dela. A pessoa sabe o que ela viu, ela sabe que o cara não tinha 700kg de verdade, mas o show dele foi um show incrível que valia a pena de ser visto. Quando você entrega só risadas, você entra no território de “mas a verdade não importa de verdade. O que importa é o riso.”

E aí você lembra que esse filme começou a ser feito quando Trump era um candidato a presidência que estava sendo chamado de “o novo Barnum.” e como é Trump nesse quesito? Bom, primeiramente, Trump é um showmen, um homem midiático que sabe usar a mídia ao seu favor, e a maior prova disso, é sua habilidade de se manter carismático enquanto fala coisas horríveis, através do humor. South Park explorou perfeitamente essa faceta de Trump ao afirmar que seus comícios políticos, tinham na prática virado shows de stand-up.

Garrison

John Oliver, um comediante que é um crítico ferrenho de Trump em seu show da HBO comentou que mesmo odiando o homem ele não consegue negar o quanto Trump é um homem genialmente engraçado. Aqui deixo o link de um texto de Scott Adams, criador das tirinhas Dilbert, chamando o Trump de “O presidente mais engraçado da história dos Estados Unidos” para explicar o porque ele é assustador. E eu mesmo, em um texto falando sobre Hitler falei sobre o perigo de políticos perigosos usando o humor como arma para atrair seguidores. Pois bem, talvez Trump tenha sido o presidente norte-americano que mais gerou o riso nos últimos tempos, tanto de seus admiradores que riem do bullying e mesquinhes que resumem seus discursos e sua conta no Twitter, quanto de seus críticos que riem do quão patético ele é, e do quão fácil ele é de se zombar. Mas ser engraçado não faz dele uma boa pessoa. Porém faz dele um bom showmen, e ele é um ótimo showmen. Acreditem em mim, pode não parecer, mas ele é um dos homens que mais tem noção do que é conduta pública aceitável e do que é inaceitável. E sempre que ele fala uma barbaridade ao vivo, é porque ele sabe que apesar de tudo, o que ele fez foi aceitável e ele não corre riscos. Ele vive de ser uma figura pública e sua persona é cuidadosamente mantida para que sua imagem pública seja exatamente o que é.

Ele é um excelente showmen, porém uma pessoa horrível mesmo nessa área, ele era ridiculamente abusivo com seus empregados, e com suas mulheres e suas amantes desde antes de ser presidente. Ele não é uma pessoa horrível por ser o presidente dos EUA, ele era horrível desde antes, mas, apesar disso, ele sempre foi uma figura extremamente carismática, e isso ajudou ele. Não foi a única coisa que ajudou ele, a conta bancária dele certamente o ajuda a se safar em muita coisa, mas ainda sim, seu carisma e sua habilidade em fazer seus fãs rirem o ajudam.

TrumpEmployees

Aí voltamos pro filme, e sua mensagem de “a verdade não importa, desde que o público ria.” se torna notoriamente perigosa. O aspecto mais importante de um cara que trata pessoas como mercadoria (literalmente, muitas de suas atrações eram crianças que Barnum pagou aos país para colocar em exposição antes delas terem noção do que acontecia, e elas ficaram com Barnum até a vida adulta), e que aplica golpes em pessoas não devia ser o quanto ele fez rir somente. Claro que a verdade importa. Depois do show, o público pode ter tido uma grande experiência, mas ele tem que sair do show sabendo diferenciar verdade de mentira. É igual um show de mágica, o mágico encanta, mas ninguém sai do show acreditando que o mágico é um ser paranormal só por não sabermos os truques.

A presidência do Trump tem sido uma presidência notável pelo quão distorcido o senso de verdade está sendo. Com emissoras e emissoras recebendo o rótulo de “FAKE NEWS” por Trump e seus seguidores, e com as notícias falsar propagando o tempo todo. Nunca foi tão difícil separar verdade e mentira no jornal do que nos últimos anos, com boatos e notícias falsas surgindo, e notícias verdadeiras ganhando o rótulo de fake. O que culminou no conceito da “pós-verdade”, em que aceitamos como verdade o que concordamos e como mentira o que não concordamos. E todas as notícias que cercam Donald Trump são regadas de pós-verdade por parte de seus leitores.

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E aí o filme sobre o Trump de dois séculos atrás nos diz que a verdade não importa, que o que importa é o público rindo.

Enfim, na vida real, também, o excesso de publicidade hiperbólica e desleal nem sempre foi lucrativo pra Barnum, como o filme faz soar. Deu certo algumas vezes e outras não. Por exemplo, ele se envolveu por muito tempo, antes de abrir seu circo, com shows da cantora de ópera Jenny Lind. Até que durante um tour dela pelo país todo, ela passa a se incomodar com a maneira como Barnum fazia publicidade de seus espetáculos, e decide cortar relações profissionais com Barnum, por não se sentir confortável trabalhando nos termos dele, muito embora eles tenham continuado amigos próximos cada um trabalhando como acha melhor. No filme, incapaz de trazer um lado problemático de Barnum a tona, ela se apaixona por Barnum e esse se recusa a trair sua mulher, com os dois se separando em maus termos, fazendo Barnum perder seu casamento e sua fonte de renda e vendo sua vida colidir por causa disso.

P. T. Barnum foi um homem complexo. Uma grande figura pública que se envolveu nos mais diversos assuntos, tomou lados em diversos debates, e deixou sua marca nos Estados Unidos. Ele pode ser visto como uma grande personificação do capitalismo, e do desejo de enriquecer a todo custo. As pessoas ao seu redor eram fonte de lucro pra ele, e ele nunca fez segredo disso. Um homem que valorizou o dinheiro acima de tudo, explorou pessoas, torturou animais, fez crianças de quatro anos fumarem em público para agradar uma plateia. Ele foi o maior nome do entretenimento de seu tempo, lutou contra os males do alcoolismo e da escravidão nos EUA, mas abusou de uma escrava idosa por lucro, e dissecou o cadáver dela em público por lucro. Em um momento em que a imagem de um homem de diversas facetas, algumas delas tão negativas surge de novo como uma simbologia para o atual presidente dos EUA, qual é a faceta primaria que o primeiro filme sobre o sujeito que surge desde que a comparação foi estabelecida foca?

O herói romântico. O sonhador. O homem que valorizou família acima do dinheiro. O herói das minorias. O homem que trouxe sorrisos ao mundo. É com esse cara que os críticos do Trump comparam ele. Com o Hugh Jackman dançando no bar de maneira estilosa, e com números de dança belos.

TrueStory
Aliás, estávamos falando sobre como a verdade não importa. Eis um bom exemplo. Exceto pelo fato de que Barnum existiu, criou um circo e fez um tour com Jenny Lind, nada mais no filme é verdade. Mas o filme tem vergonha de assumir o quão desleal ele é, usando a “história real” como modo de auto-promoção. É meio metalinguístico, pois soa como algo que o Barnum faria.
MsMojo
E o fato de 5% do filme ser uma história real não é esquecido por quem quer divulgar o filme. Seja na publicidade oficial, na publicidade indireta dos fãs, ou em canais de youtube que eu não tenho certeza de a qual dos grupos pertence.

Os Estados Unidos atuais têm muito em comum com Barnum. Com uma das populações mais diversas etnicamente do planeta, e sendo um gigante do entretenimento sendo o segundo maior país em produção cinematográfica e o primeiro em exportação, o mundo inteiro tem acesso aos Estados Unidos como uma fonte constante de cultura e entretenimento por filmes, séries, música, teatro e etc… e isso tudo mascara um país ganancioso que cresce com base na exploração desenfreada de pessoas, ataques a outras culturas, e exemplificando as piores facetas do capitalismo. P. T. Barnum foi uma grande personificação do capitalismo americano, e agora, um homem que simboliza seu legado está sentado na casa branca, comparando o tamanho do seu botão com ditadores na Coréia do Norte. E a resposta de Hollywood é comemorar esse fato, mentindo para o mundo que Barnum foi um grande homem.

Mas essa mentira não importa. O que importa é a dança do Hugh Jackman te fazer sorrir.

Sobre o autor

Izzombie

Sou um cara chato que não consegue ver um filme sossegado sem querer interpretar tudo e ficar encontrando simbolismos e mensagens. Gosto de questionar a suposta linha que separa arte de filmes comerciais, e no meu tempo livre pesquiso sobre a história da animação.

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Alertas

  • – Todos os posts desse blog contém SPOILERS de seus respectivos assuntos, sem exceção. Leia com medo de perder toda a experiência.
  • – Todos os textos desse blog contém palavras de baixo calão, independente da obra analisada ser ou não ao público infantil. Mesmo ao analisar uma obra pra crianças a analise ainda é destinada para adultos e pode tocar e temas como sexo e violência.

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