A quinta temporada de Orange is The New Black deixou muitos fãs divididos. Muitos acharam que perdeu o tom bem-humorado e moleque do começo da série, outros acharam que apelou mais pra comédia do que devia, outros acharam que tinha que ser mais sério, ou mais pesado, ou menos sério, ou menos pesado. Enfim, a coisa mais comum em uma série ao chegar a sua quinta temporada é tentar bagunçar um pouco as suas estruturas, e mudar o status quo, e se essas mudanças são boas ou ruins é questão subjetiva de gosto, mas sempre vai gerar resposta negativa de um grupo de fãs.
Pessoalmente eu gostei muito da quinta temporada. Achei muito boa, estou com o coração na mão pra saber como vai ser a sexta depois daquele gancho cruel que nos foi deixado pra aguardar por um ano. Gostei de praticamente tudo menos de um detalhe. Esse texto vai ser pra falar desse detalhe, do que eu achei que ficou genuinamente ruim nessa temporada. O personagem Desi Piscatella.
E tipo. É o Piscatella, sabem? Ele foi o vilãozão da quarta temporada, e o maior antagonista que as detentas de Litchfield já tiveram que enfrentar a série inteira, a Dogget em seu momento mais sociopata, ou a Vee não são nada perto do poder que Piscatella tinha de fazer a vida daquelas presas ser um inferno. Então tipo, tenho certeza de que muitos fãs odeiam o Piscatella pela sua crueldade e pelas consequências de suas ações, mas não é disso que estou falando. Por conseguir fazer com que sintamos tanto ódio dele, que ele é um personagem excelente. Sempre que ele estava em cena eu ficava arrepiado com como ele era um grande cuzão. E é disso que um bom vilão é feito.
Mas aí veio a 5ª temporada e… eu não consegui ver nele aquele vilão foda da quarta temporada, e me soou que o personagem inteiro era uma ponta solta que os autores não sabiam como fechar. O que é muito frustrante. Ver um personagem complexo e impactante ter seu potencial lentamente murchado.
Mas antes de falar sobre o que aconteceu com ele na quinta temporada, vamos recapitular como ele era na quarta, onde ele foi introduzido.
Piscatella é introduzido como capitão de uma equipe pra lidar com a fuga das detentas no season finale da terceira temporada. Ele aparece vestido da cabeça aos pés com um equipamento para deter revolta, mesmo que o ocorrido não tivesse sido uma. Elas estavam encurraladas, fugiram para um laguinho do lado e fugiram só pra poder ter uma tarde no lago sem nenhuma pretensão de realmente escapar da cadeia. Nada que justifique se preparar para uma guerra, mas Piscatella foi mesmo assim.
Ele então agrupou todas as detentas, foi autoritário, foi agressivo, e foi competente, trouxe todas as detentas de volta em ordem, e em função disso, Caputo, que na quarta temporada havia se tornado o diretor da prisão, dá a Piscatella o emprego que era o que ele tinha quando a série começou. O de diretor dos guardas.
O que é interessante, pois já dá pra notar o quanto ele era diferente de Caputo logo em seu visual. Caputo usava terno e gravata em seu cargo, mas Piscatella usa o uniforme de guarda, para lembrar a todos que ele é um guarda ativo e não um chefe distanciado do trabalho que os guardas fazem.
Piscatella incorporava vários traços que são muito utilizados em personagens militares em filmes normalmente pra dar um viés positivo a eles. Ele não se hierarquiza perante seus subordinados, e se trata como um igual, inclusive fazendo o trabalho duro junto deles. Ele protege seus subordinados como uma unidade, e sua presença na prisão faz os guardas se sentirem mais unidos, como parte de uma comunidade.
E esses aspectos que parecem do general legal do filme, são um problema justamente porque isso faz ele trazer a mentalidade de guerra pra Litchfield. Ele vê a prisão como uma guerra entre guardas e prisioneiras, e sob sua supervisão, as detentas não tinham direitos. As revistas ficaram mais pesadas, os abusos ficaram mais pesados, começou a ter tortura na prisão, e ele fazia vista grossa pra qualquer limite que um guarda cruzasse, pois ele transformou todos os guardas em uma grande irmandade.
Piscatella falava com um tom autoritário, e de maneira profissional. Ele personificava muito claramente o lado mais cruel do sistema carcerário. Sua preocupação maior era que todas as detentas fossem constantemente punidas por serem detentas, e que a prisão nunca saia de ordem.
E o fato de que a série se recusou a humanizá-lo, nos mostrando qualquer faceta sobre como ele possa ser quando não está uniformizado. O que foi o tema do último texto que eu escrevi sobre a série, nos ajudava a vê-lo como a personificação do sistema carcerário sendo colocado em prática.
Pois bem, Piscatella não sujava as mãos em relação as maiores atrocidades que aconteciam em Litchfield, mas sempre ficava claro o quanto a presença e a vista grossa dele eram fundamentais pra tudo rolar. Então não foi Piscatella quem obrigou Flores a ficar dias de pé sem poder dormir ou descer até ela quebrar. Foi o Stratman quem deu a ordem, mas depois que isso foi feito Piscatella incentiva Stratman a seguir adiante e não recuar com a tortura. Não foi Piscatella quem fez uma rinha entre as detentas pra apostar com outros guardas, foi o Humphrey, maior psicopata da série em uma série onde 90% dos personagens tem ficha criminal. Mas foi Piscatella quem proibiu Caputo de punir Humphrey pela sua atitude, ameaçando-o com uma demissão coletiva de todos os guardas, o que levaria caos a prisão. E por último, não foi Piscatella quem matou Poussey, não diretamente, mas foi ele quem criou o contexto pra morte dela. Uma vez que ela morreu acidentalmente durante um protesto pacifico que exigia a demissão de Piscatella, e que deixou de se tornar pacifico por ação direta do capitão dos guardas.
E isso tornava ele assustador, sua visão de cenário de guerra para o contexto carcerário, sua disposição em deixar passar qualquer ato de crueldade por parte dos guardas, e o fato dele priorizar a prisão estar em ordem do que as presas estarem com suas dignidades, tudo isso com um vocabulário profissional e uma expressão séria de quem é completamente indiferente a todas aquelas presas.
E sério, isso é um vilão excelente. Ele era realista, personificava tudo que a série queria criticar, e passava um ar de intimidação imensa, mesmo quando não está sujando as mãos.
O roteirista e o ator estão de parabéns.
Ah perdão, estavam. Vamos agora ver o que o Piscatella se tornou na quinta temporada.
Bom, em diversos sentidos os extremo oposto do que vimos até agora. Tipo, outro lado do espectro mesmo. E é nessa hora que você me diz: “claro que não, cala a boca, eu vi a temporada, ele continua cuzão.”, e sim, ele segue sendo um antagonista, e pela falta de outros antagonistas na temporada segue sendo o principal deles, mas com uma abordagem bem diferente.
A série começou e logo de cara já nos mostrou que o personagem ia ser diferente em duas maneiras bem claras. Lembram o que eu falei de humanização? Pois é, por conta da morte da Poussey, Caputo dispensou Piscatella de seu posto por dois dias, e foi aí que estourou uma rebelião no presídio, e a primeira vez que vemos ele na quinta temporada é ele almoçando com suas roupas civis enquanto fica sabendo da rebelião. Ou seja, finalmente vemos ele fora de seu posto.
E ainda descobrimos que ele tem o hobby de competir em concursos de decoração de mesa, e que apesar de aparentar ser ridículo, ele se orgulha profundamente dos prêmios de ganhou. Isso é o tipo de informação que a série propositalmente nos omitiu na temporada anterior, para não vermos nele nada além do Capitão dos Guardas, e agora podemos ver, o lado humano do Piscatella.
Também vemos seu trabalho ser o oposto. Ele quer apitar e fazer algo quando a rebelião, mas ele está completamente fora de sua juridição, já que o governador não deu ao capitão dos guardas a autoridade pra resolver o problema. Então se o Piscatella foi um autoritário durante a temporada passada toda, agora ele está desprovido de seu poder.
E por último, a icônica barba do personagem, que era um dos símbolos dele, foi barbeada, por ele mesmo, por acreditar que se for para entrar em confronto físico com as detentas ele não poderia arriscar ter a barba puxada. Faz sentido, e seria muito verossímil com sua personalidade, se não fosse pela sua primeira aparição ele ter ido pra prisão esperando confronto físico e ainda sim mantinha sua icônica barba bem a mostra.
Piscatella estava sendo o oposto de quem ele era visualmente, no papel que ele exerce naquela prisão e na maneira como a série abordava ele, mas ele seguia sendo exatamente quem ele era, no sentido de que ele não havia feito nada que ele não faria na série.
Era até bom, ver como a mudança de contexto trabalhava o personagem. A cena dele tomando uma comida de rabo da mulher que o governador designou pra cuidar da situação, em que ela expõe a misoginia do Piscatella e como um homem com a personalidade dele não deveria trabalhar em um presídio, é fantástica. Tiramos o vilão de sua zona de conforto e vamos ver como ele vai agir agora que está enfraquecido.
Mas aí veio o oitavo episódio da temporada, onde Piscatella decide com a prisão em meio a uma grande rebelião, invadir o local tendo como objetivo primário torturar a Red.
O que segue essa invasão é o Piscatella se portar menos como uma voz de autoridade que permite que o sistema agrida as prisioneiras, e se portar mais como o bicho-papão. Uma vez dentro de Litchfield ele sequestrou 5 prisioneiras e a própria Red. O que ele queria era poder torturar Red na frente de suas aliadas, para humilhá-la e vencer uma batalha moral.
Ou seja, depois de tudo o que foi construído pelo personagem na temporada anterior, ele não tinha interesse nenhum em libertar os seus colegar guardas feitos de reféns, interesse nenhum em restaurar a ordem em Litchfield e acabar com a rebelião, ele simplesmente queria sadicamente sujar as mãos, operando fora do sistema e fora da lei, para fazer um ajuste de contas.
E isso é o extremo oposto de tudo o que o personagem apresentou.
Piscatella e Red já se odiaram e já se bicaram desde os primeiros cinco minutos em que eles interagiram, então não é um ódio recente o que eles possuem um pelo outro. Porém quando ele era capitão da guarda, ele não gratuitamente ia bater na Red só porque odiava ela. Ele começou a fazer isso quando ganhou um pretexto, ou seja, quando ele descobriu o corpo de um guarda enterrado na prisão e conduziu uma busca para encontrar o responsável ele usou o contexto da investigação para então começar abusar de Red.
Mas não é o caso. Aqui ele invadiu um ambiente perigoso só pra poder espancá-la. Isso faz pouquíssimo sentido. Como um homem como ele, com a perspectiva dele abandona seu posto e abandona a guerra pois se cegou levando pro pessoal.
O que se explicita quando perguntam a ele se ele pretendia resgatar os guardas e ele deixa bem claro que não, que ele não mover um dedo pra ajudar os guardas feitos de reféns. Esse é o mesmo cara que fazia discursos sobre a irmandade e ajudar o colega sempre?
A quinta temporada ainda nos deu um flashback para o Piscatella no episódio 10, o que é algo que eu estava esperando que tivéssemos sim, vou ser sincero. Mas aí é que tá, um segredo que Orange is the New Black domina muitas vezes, mas nem sempre… flashbacks são legais quando estão revelando algo que realmente não sabíamos. A série dá seus vacilos de vez em quando, e nos mostram o flashback da Soso falando com o maníaco sexual ou da Alison dividindo o marido com outra esposa, que sinceramente não nos levam a lugar nenhum. O flashback do Piscatella no caso é pra nos mostrar como que um incidente que estava sendo bem preparado desde a temporada passada rolou.
Vejam bem. Na primeira aparição do Piscatella ele fala que foi transferido da Segurança Máxima Masculina, o que o diferenciava de todos os outros guardas novos que eram veteranos de guerra. Aí no último episódio da quarta, quando Piscatella se faz de joão-sem-braço com a morte da Poussey, o Caputo afirma que vai investigar também o incidente que fez ele ser transferido da Segurança Máxima. Ou seja, já tínhamos aqui a informação que ele fez uma merda pra ser rebaixado pra cuidar de Litchfield. Aí na quinta temporada a Red descobre que ele assassinou um detendo queimado, prendendo ele no chuveiro fervendo até ele morrer.
Pois bem, aí então vemos o flashback dele na prisão masculina de segurança máxima, onde ele se apaixonou e teve um caso com um detento chamado Wes Driscoll. Eles mantiveram um romance em segredo dos outros guardas e detentos por muito tempo, e vou presumir que era minimamente sério, pois eles chegaram ao nível de tatuar as iniciais do outro em lugares combinando. Enfim, um detento cuzão que odiava o Piscatella descobriu, e juntou a galera da prisão pra fazer o famoso estupro-coletivo-da-prisão no Wes. O Piscatella então ficou tão puto pra cacete que matou esse cara que estuprou o Wes.
Ok, qual o problema? Simples, o Wes. A existência dele não faz sentido. O Piscatella é um cara que odeia detentos mais que tudo, que faz questão de deixar muito claro que detentos não tem lugar na sociedade e que a linha que separa guardas de detentos é uma linha de guerra.
Eu vou presumir que quando ele se apaixonou pelo Wes ele não via o mundo assim, preto no branco, afinal ele literalmente se apaixonou e se entregou em um romance com um detento. Pois bem, então o flashback mantém a dúvida de quando o Piscatella passou a ver detentos com sua visão. Afinal, matar o estuprador do Wes não passa uma sensação de “o início da corrupção.” não passa a sensação de nada, é só ele fazendo uma coisa que já sabíamos que ele tinha feito, mas explicando que sua personalidade fria e sua mentalidade escrota não foram o motivo.
Quando ele fala que detentos não merecem nada, e não devem ser tratados como humanos, ele inclui o Wes nisso? Não fica claro. Em determinado momento ele fala que a única coisa que um detento sabe fazer é enganar, trair e manipular as pessoas. E eu achei vendo o flashback que ele estava falando do Wes, que o Wes iria traí-lo de uma maneira que o faria nunca mais confiar de novo.
Mas não, o Wes foi do bem até o fim, e o flashback não nos deu nada pra me fazer acreditar que os dois possam estar em maus termos hoje. Então como é que de lá pra cá a personalidade dele fez essa volta de 180º? Para então fazer outra volta de 180º entre a quarta e a quinta.
De guarda durão mas de coração mole que só foi levado a matar ao ver o namorado ser estuprado. Para guarda cuzão e frio sem empatia que insiste em guerra de guardas vs detentos. Para cuzão que invade a prisão só pra brincar de Jason Voorhess e que ri sadicamente enquanto pratica tortura. Qual dos três é o personagem real?
E é assim que um personagem com potencial para ser um dos mais complexos e interessantes (e assustadores) da série, se torna uma bagunça, Um cara volátil do nada muda completamente de postura e mentalidade.
Aí eu pensei: “Calma, calma, acredita na série, ele ainda pode ser complexo e podemos ver todas essas pontas se amarrarem na sexta temporada, dependendo do que ele for fazer lá agora que seu plano de tortura sádica fracassou. Ele pode nos justificar todas suas ações e sair como um personagem muito elaborado e humano.” e por causa disso eu pensei “você tem razão, voz na minha cabeça, devo ser paciente e ver o que a próxima temporada reserva ao personagem antes de julgá-lo pelo conjunto da obra.”
Mas aí ele morre logo no final da temporada, deixando muito claro que isso foi a totalidade do personagem e isso foi o conjunto da obra.
Triste. Mas sabem o pior? Sabem o pior? É que a morte dele soa irônica e cármica, mas olhando de perto vemos que não foi.
Tipo, no fim as amigas da Red invadem o local-da-tortura, salvam todo mundo e elas prendem o Piscatella. Mas em determinado momento, vendo o Piscatella preso e impotente, Red decide soltá-lo pra firmar que ela é melhor do que ele. Piscatella derrotadão sai do local onde estava pra levar um tiro na cabeça da Swat que saiu atirando sem mirar e sem ligar pra casualidades, tal como o protocolo deles diz que se deve agir em prisões em rebelião.
E você pensa: “Exatamente. Um homem que contribuiu pra violência do sistema tão fortemente, agora foi morto pela violência do sistema. Bem feito.” Mas será que é isso, o que ele merecia?
Um vídeo dele cometendo tortura filmado dentro da prisão havia caído no youtube. Enquanto ele torturava Red, Piper gritava “eu espero que um dia você seja preso pra sofrer o que nós sofremos.” e ele arrogantemente responde que nunca acontecerá, pois nunca levarão o que elas tem a dizer a sério. Ao final, quando Red encara Piscatella preso e sem poder algum, ela fala que no fundo eles tem muito em comum, e o vilão retruca que não. Que ele é um homem livre e ela é uma detenta e isso é um fato que não mudaria em anos e sempre demarcaria a diferença entre os dois. Red fala que aceita fazer essa aposta com ele.
E Red perde a aposta. Pois Piscatella nunca foi preso, ou julgado, e talvez não seja nem reconhecido como o monstro que ele era. O vídeo que foi ao ar mostrando os abusos dele sequer o nomeou. Ele foi morto, e vai ser contabilizado como uma das duas vítimas letais do incidente de Litchfield. Não foi cármico, ele venceu, ao morrer livre e impune, ele provou que ele estava sim acima da lei, tal como disse pra Red que estava. Deram a vitória ao vilão.
Aliás dava pra fazer todo um outro texto sobre como carma e a noção de “ter o que merecia” funciona em Orange is the New Black, pois eu sinto que quase ninguém ali teve o que merecia de verdade, quem fez pouco se fodeu demais, e quem fez muito se fodeu de menos. Um fenômeno fascinante de se observar em uma série que nos mostra como crimes são punidos.
Enfim. Eu gostei da temporada, de verdade. Mas eu lamento que eles tenham conseguido tirar do Piscatella tudo que fazia ele ser quem ele era. Sua barba, sua personalidade, seu poder, sua mentalidade, tudo no ralo, para podermos ter essa side-quest besta dele torturando a Red. Que no final tem influência mínima no plot, mínima o suficiente para poder chamar de filler.
Sim, eu sei que o vídeo dele batendo na Alex no youtube acelerou as negociações, mas se o episódio final as negociações foram ignoradas completamente para a SWAT poder invadir com gás e bala de pimenta, então foda-se, não teve impacto real no plot. Foi ruim e desnecessário, e agora um personagem interessantíssimo está morto.
Foi um vilão melhor do que essa série conseguia lidar. Que começou representando tudo o que estava de errado no sistema carcerário, e morreu parecendo com “um guarda ruim que passou da linha por ser um psicopata.” Eles não queriam uma representação fria e cruel da desumanização do sistema carcerário. Eles queriam o Jason, e nos deram o Jason!