Olá, bem-vindos a mais um texto no Dentro da Chaminé, eu sou seu apresentador, Izzombie, e vocês são uma plateia espetacular.
[APLAUSOS]
Antes de começarmos o programa quero lembrá-los de que a palavra mágica do dia é intertextualidade.
Intertextualidade. Em grande resumo, é o que acontece quando uma obra de arte que você está apreciando faz um dialogo explícito ou implícito com outra obra de arte que o expectador pode ou não ter visto, e o percebimento desse diálogo pode trazer novas camadas de apreciação na experiência de se desfrutar de uma obra de arte.
Aí você me diz: “Ei, você está falando de referências?” e eu digo: “Sim, mas não é só isso.” Tipo, sim, referências. Porém referência é só um dos vários modos em que uma intertextualidade pode se apresentar, e no geral, pode ser um dos modos mais sem graças, se for o tipo de referência do qual o Capitão América dá uma risadinha e a intertextualidade morre nessa risadinha.
Outro tipo muito claro de intertextualidade são paródias por exemplo. Ou cenas de filme que homenageiam diretamente cenas de outro filme. Tem diversas maneiras de trazer intertextualidade a um filme.
Nesse texto eu quero falar um pouco do filme Get Out, que estreou nos cinemas americanos faz muitos meses e nos cinemas brasileiros em maio, e apontar como três filmes com os quais Get Out possui intertextualidade, podem nos ajudar a apreciar ainda mais um filme que não precisa realmente que percebamos todas suas influências pra ser um filmão bom pra porra.
Os filmes em questão são: Guess Who’s Coming for Dinner (1967), Stepford Wives (1975) e The Night of the Living Dead (1968). Isso mesmo, todos filmes de mais de quarenta anos. Aliás, vai sem dizer, que não só Get Out, mas esses três filmes também, vão ter spoilers dos quatro. É inevitável.
Vamos lá, esses três são os únicos filmes com quem Get Out dialoga? Não! Nem de longe! Get Out é um amontoado de homenagens a filmes clássicos e uma boa mostra do quanto o diretor Jordan Peele tem um repertório excelente de filmes de terror. O clima de paranoia e de gradualmente se sentir claustrofóbico em um amontoado de pessoas supostamente simpáticas, mas que não acreditam, entendem ou se importam com a razão de seu desconforto, lembra muito o clássico do Polanski Rosemary’s Baby.
Imagens que imediatamente nos remetem ao que Clockwork Orange tem de mais famoso e perturbador, são maneiras eficientes de causar tensão no expectador. Graças ao diálogo que imagens como um jovem preso em uma cadeira sendo obrigado a assistir pela televisão que ele vai sofrer um tratamento. Ou uma jovem vestida de branco tomando tranquilamente um copo de leite enquanto planeja um ato de psicopatia pura, ou mesmo um jovem vestido socialmente girando incontrolavelmente um bastão. São imagens que estão marcadas em hollywood como ícones de horror psicológico, o que torna essas cenas ainda mais fantásticas.
Ainda que não precisemos ter visto Clockwork Orange ou mesmo conscientemente notar as semelhanças na hora, graças ao roteiro que coloca contexto nessas cenas para torná-las tensas independente de se você pega ou não a referência, mas ela ainda está ali.
Mas enfim, então porque eu não faço esse texto inteiro comparando Get Out com Clockwork Orange e Rosemary’s Baby que são filmes mais famosos? Por que é que eu quero pegar esses três exemplos muito específicos para pensar no filme? Pois o diálogo que Get Out faz com esses três filmes é de mesma natureza, e é um caso de bait-and-switch, um termo em inglês que não tem uma tradução boa em português. Seria o ato de te preparar para receber uma coisa, e então te entregar outra. Ou seja, é como o filme usa a semelhança com esses três filmes para direcionar expectativas para um certo tipo de situação ou desfecho e então entregar outro desfecho, brincando com nossas expectativas e antecipações.
Jordan Peele antes de fazer um filme de suspense aclamado pela crítica, era um comediante e fazia comédia. De todos os gêneros do audiovisual, suspense e comédia, provavelmente são os dois que mais brincam em trabalhar e subverter as expectativas de sua audiência, pois é justamente a relação entre o que se espera e o que se recebe, que causa o desespero ou o riso, dependendo do talento do artista.
Então vamos lá:
Guess Who’s Coming for Dinner:
12 de Junho de 1967. Foi o primeiro dia em que oficialmente todos os estados dos Estados Unidos da América já haviam legalizado o casamento interracial. 12 de Dezembro de 1967 estreou nos cinemas um dos primeiros filmes a mostrar casamento interracial como algo de viés positivo.
Guess Who’s Coming for Dinner conta a história de John Prentice, um homem negro que está acompanhando a namorada Joanna para a casa dos pais dela para conhecê-los. O pai de Joanna supostamente é um intelectual progressista que a educou para não ser racista, mas tem todo seu discurso desafiado quando ele de fato percebe que não está confortável com Joanna tendo escolhido se casar com um homem negro, e não aprova o casamento.
Ao longo do filme ele reflete sobre o assunto diversas vezes e ouve vários conselhos, até terminar com ele fazendo um discurso de aceitação de John em sua família. O filme foi dirigido por Stanley Kramer, que gostava de fazer filmes com morais bem explícitas, e foi feito especialmente pra promover o casamento interracial como algo aceitável, o que na época era algo polêmico a se fazer.
O que não impede o filme de hoje, passadas décadas desde que o tema tabu que o filme apresentou deixou de ser um tabu, possa ser visto pelo que ele tinha de problemático. O personagem de John, mantinha o estereótipo do “bom negro”, que seria um negro que tenha modos brancos e que não reproduza sua cultura e sua identidade negra, para assim os brancos possam achá-lo inofensivo e aprová-lo. Firmando a ideia de que o casamento interracial era positivo, desde que fosse com um “bom negro” que fosse um contraste direto com aqueles negros revoltados que lutavam contra o racismo e apareciam na mídia na época que o filme foi lançado.
O filme contrasta isso diretamente com a empregada negra de Rose, presumindo que John era um militante revoltado e badernista, mas o filme nos mostra que ele é o contrário, ele é um médico muito importante, e um homem que não expressa sua negritude em nenhum momento, e portanto ele é um negro aceitável.
Pois bem, seja pelo que o filme tinha de inovador ou pelo que o filme tinha de problemático, em ambos os casos o filme se tornou um grande caso a ser estudado para poder se falar de como o cinema norte-americano representa os negros e as relações raciais, se tornando um dos principais filmes analisados por esse assunto.
Por isso não é estranho que 50 anos depois, estreie um filme disposto a discutir relações raciais nos Estados Unidos que tenha o exato mesmo ponto de partida.
Em Get Out Chris Washington é um jovem negro indo visitar os pais de sua namorada, nervoso com o fato de que ele provavelmente causaria um estranhamento e um desconforto enorme por ser negro (na melhor das hipóteses, na pior das hipóteses ele seria notavelmente mal tratado). A namorada tenta assegurá-lo de que isso não vai rolar, pois eles são democratas progressistas pró-obama.
O bait-and-switch vem do fato de Chris não ser o “bom negro” que John Prentice é. Ele também não é o “mau negro” e nem o “mais-ou-menos negro”, ele é só um cara normal, um fotógrafo que quer ficar de boa, curtir o fim de semana, tirar umas fotos e ficar na companhia da namorada. Mas ainda assim, ele fala suas gírias, é um cara negro, que vive uma realidade muito diferente daquelas pessoas e que é lembrado por elas em praticamente toda conversa que ele tenta ter, gerando um deslocamento enorme.
O fato dos pais de Rose, a namorada de Chris, se afirmarem como um pessoal progressista e super não-racista não é nesse filme apresentado como uma contradição do fato de que eles intimidam Chris e o fazem se sentir sufocado em seu deslocamento. Diferente de Guess Who’s Coming to Dinner, em que isso é uma contradição e um conflito para o pai da menina, aqui em Get Out, isso é um fenômeno normal, afinal aquelas pessoas genuinamente acreditam e mantém seus discursos de não-racistas não importa o quanto eles intimidem Chris.
E isso é literal. Até mesmo após a grande revelação do filme, em que existe uma conspiração que sequestra negros para roubar seus corpos, um membro dessa conspiração insiste em explicar para Chris, que apesar dele ser parte desse clube de sequestro-de-tortura da população negra, ele não é racista. Pois na perspectiva dessas pessoas isso não é uma contradição. O que é uma cutucada direta aos brancos de classe média progressista que estão mais interessados em fetichizar a experiência de ser negro do que em realmente integrá-los na sociedade. O diretor mesmo afirmou que uma das coisas que o levou a fazer o filme era a quantidade de brancos que acreditavam que o Obama representaria que os EUA haviam chegado em uma era pós-racial.
Ao longo do filme, Chris encontra em um homem chamado Logan, o único outro negro na festa que os pais de Rose deram, e buscou nele alguma familiaridade. Porém ele notou que ele e Logan não possuíam nada em comum, culturalmente falando. Logan era casado com uma mulher branca na vizinhança e muito bem inserido na vizinhança, mas era incapaz de ter uma conversa normal com Chris. Ele era o “bom negro” que John representava em Guess Who’s Coming to Dinner. Só que com o twist, Logan era na verdade um senhor branco idoso que roubou corpo de um jovem negro chamado Andre para viver a juventude em seu corpo. Ou seja, não é que só que o negro precisa ter um “certo perfil” pra ser aceito nessa sociedade, ele precisa ser literalmente um branco por dentro.
Enfim, Guess Who’s Coming to Dinner se tornou um filme tão icônico que a mera menção do nome se tornou um lugar comum na cultura pop. Em 2005 o Ashton Kutcher e o Bernie Mac protagonizam uma comédia baseada na inversão de papéis, em que Ashton Kutcher é o noivo branco tendo que conhecer os pais negros de sua namorada que apesar do tom cômico e de poucas semelhanças com o clássico se chama Guess Who?. Na mesma vibe, o episódio de Fresh Prince of Bell-Air em que a tia de Will revela pra família que vai se casar com um branco para a desaprovação de todos se chama Guess Who’s Coming to Marry. Então já entenderam, né? O nome do filme se tornou sinônimo de qualquer tensão que outras obras possam ter entre relações interraciais entre um genro e os pais da noiva.
Stepford Wives:
Stepford Wives é um livro escrito em 1972 que foi adaptado para o cinema em 1975 e novamente em 2004. E entre 1975 e 2004 produziu três sequências, todas as três bem ruins, tentando se firmar como uma grande franquia de suspense. Enfim, nesse texto vou falar do filme de 1975, porque foda-se o remake, fodam-se muito forte aquelas sequências ruins e eu não li o livro.
Enfim. Stepford Wives conta a história de Joanna Eberheart. Uma fotógrafa de Nova York que é convencida por seu marido a se mudar com os filhos para Stepford, um subúrbio localizado em Connecticut. Uma vez em Stepford, seu marido se filia a um clube chamado “Clube dos Homens”, onde Joanna naturalmente não sabe o que rola lá, e ao passar o tempo com as demais mulheres de Stepford, ela nota que são em sua maioria absoluta excessivamente submissas, obcecadas por trabalho doméstico, sem nenhum interesse intelectual ou profissional. A situação vai piorando quando as poucas amigas que ela tem que não são assim e tem interesses maiores do que servir o marido e cuidar da casa, uma a uma vão se tornando indistinguíveis das outras, do dia pra noite.
O filme trabalha com ênfase na paranoia, o que faz sentido já que o livro é escrito pelo mesmo escritor de Rosemary’s Baby. O sentimento de Joanna se isolando cada vez mais de tudo em Stepford, pois Walter se recusa a acreditar nela que as mulheres na cidade são estranhas, e tenta fazê-la acreditar que está vendo coisas que não existe. Isso até vir o grande plot-twist: essas mulheres são todas robôs, idealizadas pelo Clube dos Homens, para serem as esposas perfeitas. Então os homens levam suas esposas para Stepford, para que elas sejam lobotomizadas e modificadas pelo Clube dos Homens para perderem seus defeitos.
Joanna tenta lutar e escapar, mas é eventualmente encurralada pela robô que vai substituí-la, e se vê incapaz de lutar contra seu destino. E o filme termina com ela fazendo supermercado feliz por ter um casamento feliz e funcional e viver a vida perfeita em Stepford.
Pois bem, Stepford Wives é um filme que logo se tornou sinônimo de todo o estereótipo da dona de casa submissa, e a palavra “Stepford” entrou para o vocabulário americano como sinônimo de falsa perfeição. Com um filme que se tornou uma referência clara para todo o conceito de “lavagem cerebral para atingir um certo status quo”, é muito fácil lembrar de Stepford Wives enquanto se assiste Get Out, o próprio diretor já confirmou ter sido uma inspiração.
Pois bem, esse é o lance. Enquanto Chris Washington tinha expectativas que a situação dele fosse algo nos moldes de Guess Who’s Coming to Dinner, o expectador, que viu o trailer, e mesmo se não tiver visto o trailer, sabe que se trata de um filme de suspense, está preparado pelas normas do gênero a esperar desde o começo que a situação seja igual à de Stepford Wives.
Os paralelos começam muito rapidamente. Chris é um fotógrafo que mora em Nova York, mas é convencido por sua namorada, Rose, a passar um fim de semana na casa de seus pais numa casa isolada no campo em uma área que nunca é nomeada no filme. Só nessa semelhança entre carreira profissional, lugar de origem e motivo da mudança de localização, o diretor já foi capaz de traçar paralelos que conectam os dois filmes diretamente.
E aí é que está. Ao chegar na casa da família Armitage, Chris começa logo a reparar em como a situação é estranha. E ele nota isso não pelos Armitages casualmente fazendo comentários que deixam Chris desconfortável enquanto juram de pés juntos não serem racistas e votar no Obama, pois esse tipo de merda ele já esperava. Ele nota isso na maneira como os empregados negros dos Armitages: Georgina e Walter se comportavam. Eles eram excessivamente sorridentes, pareciam muito felizes em uma vida como empregados sem reclamações.
Ao mesmo tempo eles obviamente não dividiam certos comportamentos com Chris. Eles desconheciam as gírias de Chris e seus gestos, como se fossem todos completamente despidos de sua negritude. No filme, Joanna nota que quando as mulheres são transformadas elas perdem seu vocabulário mais complexo, esquecendo o significado de diversas palavras, e o mesmo efeito pode ser aplicado ao expectador quando Georgina revela não saber o significado da palavra snitch (dedo-duro em inglês-gíria).
Isso com o fato de que o tema da hipnose nos foi jogado relativamente cedo no filme, nos conduz a acreditar que todos aqueles negros na verdade sofreram uma lobotomia semelhante a que as Esposas de Stepford sofreram, para serem os empregados perfeitos, o que não é o caso. Mas as semelhanças com o filme induzem qualquer um familiarizado com ele a sentir isso.
Stepford Wives é um filme que faz uma critica enorme ao ambiente dos subúrbios, e como o seu isolamento dos polos urbanos, ajuda a manter as mulheres longe de atividades que a libertem da submissão da vida doméstica. No caso de Get Out, Chris não está em um subúrbio, e sim em uma casa bem isolada (o pai de Rose comenta que a casa mais próxima seria passando um lago), porém na primeira cena do filme, vemos um jovem rapaz negro ser sequestrado violentamente quando acidentalmente entra em um subúrbio. Assim que ele percebe que entrou em um, ele já fica tenso, e acaba sendo pego antes de poder sair. Então mesmo que o filme não se passe em um subúrbio, ele divide com Stepford Wives a noção de que o subúrbio é um local que permite o domínio do grupo opressor (o homem branco).
Porém assim como o processo pelo qual os negros de Get Out passaram não se restringe à hipnose, o final também é diferente, uma vez que Chris consegue vencer seus captores e escapar com vida sem passar pelo procedimento Coagula.
Então falemos sobre o final. O momento em que Chris percebe que ele não está em Guess Who’s Coming to Dinner e nós, a audiência percebemos que ele não está em Stepford. Ele está em algo assustador, um projeto de perda completa de identidade, e de passar o resto da vida como um expectador do próprio corpo como um espaço para os brancos se expressarem. Incapaz de morrer ou se comunicar ou de nada.
E então ele decide escapar, e então ele entra no terceiro filme da intertextualidade.
The Night of the Living Dead:
Dentre os vários méritos de Get Out podemos destacar o fato dele pegar o gênero de terror e usar como ponto de partida pra fazer um grande comentário sobre como as relações de raça se dão nos Estados Unidos… isso é algo que não fazem muito. O último filme grande e relevante a ter feito isso, fez isso 49 anos atrás. E fez isso sem querer. Foi o clássico de George Romero e precursor de todo o gênero de filmes de zumbi, The Night of the Living Dead.
No filme, um grupo de sobreviventes se reúne em uma casa fugindo dos mortos vivos. Nesse grupo, o racional protagonista Ben, tem que lidar com o pânico de Barbra e com o discurso emocional de Harry pra sobreviver. O que tem de se inesperado nessa dinâmica? O Ben é negro.
Tipo, sempre tem um negro no grupo nesses filmes (atualmente. Naquela época não tinha tanto), mas ele nunca ocupa a posição de protagonista ou de “cara racional”. O estereótipo diz que ele é o primeiro a morrer, mas nos filmes que eu vejo ele é mais o cara que faz a piadinha de “Pô mano, eu vi o que acontece nos filmes, eu não vou ser o primeiro a morrer não.” e aí morre em terceiro.
E como eu disse, isso não era pra ser uma subversão, foi acidental, o Romero não esperava escalar um ator negro, mas ele foi bem no casting e pegou o papel, sem ter o roteiro alterado para começar a falar de raça. Um ator negro conseguindo o papel pensado para um ator branco por conta de seu talento, é um fenômeno que o pessoal do Oscar afirma que ainda acontece com frequência, embora eu tenha minhas dúvidas.
Inclusive não tem prova maior de que o roteiro não foi modificado pela inclusão de um ator negro, do que as cenas dele sendo violento com os outros sobreviventes quando o impulso deles de fazer merda é grande demais. Um homem negro batendo numa mulher branca e se safando como o herói? Como se ele fosse o John Wayne? Isso você não via em todo roteiro.
Enfim, resumindo ao que importa, o Ben era o cara competente e foda do grupo, que tinha que compensar os erros de todos os outros caras. E para resumir a história, no fim TODO MUNDO faz merda e acaba morto pelos zumbis e somente Ben sobrevive (muito embora ele sobreviva seguindo um plano que ele se recusou a seguir o filme inteiro por julgar um plano ruim).
Amanhece e o problema dos zumbis foi resolvido. Como? Um bando de caipira armado sai de suas casas e mata todos os zumbis. Simples, né? A polícia aparece para apertar as mãos dos caipiras maníacos-do-rifle e tudo está certo.
E então Ben se aproxima da janela pra confirmar se é mesmo seguro sair, e leva um tiro bem na testa, disparado por um policial que o confundiu com um zumbi que esqueceram de matar.
E esse final foi impactante pra cacete. O filme estreou meros seis meses após o assassinato de Martin Luther King e conflitos entre negros e a polícia estavam altíssimos e em todo lugar na mídia. E mesmo que o personagem inicialmente fosse pra ser branco, ao se tornar negro, adicionou sem querer uma mensagem poderosíssima ao fim do filme.
“O homem negro pode sobreviver ao apocalipse zumbi. Ele pode sobreviver a todos os clichês de um filme de terror sendo o mais esperto e o mais competente. Quando o mundo deixa de ser o cenário de um filme de terror e volta a ser um cenário de realidade, ele volta a ser uma pessoa que pode ser morta pela polícia gratuitamente.”
E sério. Isso é pesado. E muitos fãs do filme debatem até hoje se o policial genuinamente confundiu ele com um zumbi ou se ele tirou vantagem do contexto pra matá-lo sabendo que ele não era um zumbi. E na moral, eu acho que não importa. O policial do filme confundindo um homem negro com uma ameaça a sociedade e atirando primeiro antes de ter certeza de qualquer coisa, é algo que remete a assassinatos de inocentes que ocorrem o tempo todo, e se a confusão do policial era genuína ou não, não impede o paralelo com uma série de assassinatos horríveis que ocorrem até hoje de ser traçado.
A gente fala do clichê do negro que morre primeiro, do negro que não sobrevive ao filme de terror, mas esse filme nos indica outra situação. O negro pode sobreviver ao filme de terror, mas ele não sobrevive à vida real.
O filme definitivamente deixou sua marca na audiência negra. Tanto pelo zetgeist, o fantasma da época, quanto por ser uma dos poucas vezes em que eles puderam ver um negro protagonizar um filme de terror e se depararam com esse final soco na cara.
Enquanto Night of the Living Dead deu essa voadora de dois pés acidentalmente, Get Out ameaça dá-la de propósito. Na reta final do filme o diretor nos ameaça dar exatamente o mesmo tipo de final. Chris se liberta da prisão onde ele estava. Ele mata seus captores um por um, e escapa. Eram 6 pessoas com quem ele teve que lutar. Deixou o irmão de Rose inconsciente com uma bola de bocha. Depois empalou o pai de Rose com a cabeça empalhada de um veado. Depois ele arrebenta a xícara de chá com a qual os brancos mantinham controle sobre ele, e esfaqueia a mãe de Rose roubando a faca que ela ia usar pra atacar ele, após isso, ele sobrevive a um mata-leão do irmão de Rose, e esfaqueia sua perna e escapa. Ele é atacado pela avô de Rose, no corpo da empregada Georgina, que estava dentro do carro dele. Ele bate o carro, sobrevive a batida, mas ela morre no processo. Porém o avô de Rose e patriarca da família, que estava no corpo do zelador Walter, ataca ele. Chris liberta Walter com o flash de seu celular, e ao recuperar seu corpo, Walter se suicida pra nunca mais ter o corpo roubado pelo Vovô Armitage de novo. Sobrou apenas Rose, com quem ele luta no meio da estrada.
Então recapitulando. Foi um cientista louco. Uma hipnotizadora. Um lutador de MMA, uma senhora, e um ex-atleta olímpico com tendências nazistas no corpo de um homem de porte físico invejável. E ele ganhou de todos eles pra sobreviver, agora falta só a principal, Rose, foi quem colocou ele nessa armadilha. Ele coloca as mãos no pescoço dela pra matá-la, ela é a única coisa impedindo ele de voltar pro mundo real.
E então ouvimos sirenes.
É o mundo real vindo até Chris.
Para um carro de polícia na frente dos dois. Chris levantas as mãos com medo e Rose sorri. O poder dessa cena é fenomenal, um dos melhores momentos do filme, falando do ponto de vista narrativo.
Quero aproveitar essa cena pra comentar um comentário feito recentemente aqui no Dentro da Chaminé, no meu texto de Zootopia. Onde o autor do comentário critica a maneira como eu falo de raça no texto, dando a impressão de que só brancos podem ter preconceitos.
Então. Preconceito: a noção de que “já temos opinião e julgamos pessoas antes de conhecê-las.”, pode ser cometido por qualquer um, e a alta existência de preconceitos são parte fundamental de uma sociedade racista. Mas não achem que o racismo para no preconceito. Preconceito é aquilo que o artista que ia roubar o corpo do Chris jurava de pés juntos que ele não tinha. E quer saber? Vamos acreditar nele, por que não? Ele obviamente não julgava Chris pelo seu perfil físico e sim pela sua arte e pela maneira como Chris se comunicava através de seu trabalho por anos. Ele era o único no filme capaz de ter uma conversa real com Chris sem deixá-lo desconfortável e tudo o mais. Então sob esse viés, podemos pegar o personagem do Jim Hudson e colocar nele esse rotulozinho de “não possui preconceitos.”
A pergunta central é: E daí? Foda-se. Ele, mesmo alegando ser por outros motivos, participou de um leilão de outro ser humano, frequentava o círculo social de um grupo de racistas, e fez parte diretamente de um projeto de sequestro, tortura, objetificação e apagamento de identidade de pessoas negras em massa. Então quem se importa se no fim do dia ele genuinamente tirava conclusões sobre alguém baseado na cor? Não faz diferença o que ele acredita lá no fundo. Ele é o que ele faz, e ele ajuda em um sistema criminoso de opressão contra os negros. Ele era tão racista quanto todo mundo naquela festa, e o fato dele pessoalmente não ter nada contra negros não torna ele melhor do que o pai da Rose.
Então em meu texto sobre Zootopia, ou nesse texto mesmo, ou qualquer futuro texto em que eu for falar de raça, eu estarei menos preocupado de se um negro é capaz de odiar um branco tanto quanto um branco é capaz de odiar um negro, e mais preocupado em se um negro é capaz de ajudar em uma conspiração criminosa tendo toda uma comunidade como cúmplice e tendo como objetivo, a opressão sistêmica da população branca. E aliás eu acredito que não, que isso não teria a menor viabilidade de acontecer.
Racismo é estrutural! Todas as estruturas de poder da sociedade fazem sua parte enquanto instituição pra manter a sociedade segregada. E todos nós sabemos disso, sabemos o quão normal é um enorme número de injustiças ocorrerem com negros sempre que eles dependem da ajuda de uma instituição. E algumas pessoas negam que isso acontece, mas todos nós sabemos. Todo mundo sabe.
E é aí que eu quero voltar exatamente pra esse momento no filme. A sirene tocou e todo mundo entendeu exatamente o que aconteceu. Chris levantou as mãos e Rose sorri e o público imediatamente percebe a possibilidade real de Chris morrer. Só um branco poderia rir nessa situação.
Vamos analisar a situação friamente. Sério, com a maior frieza do mundo. O que o policial ia encontrar é um ser humano, ferido e ensanguentado em uma luta corporal com outro ser humano ferido e ensanguentado, sendo incapaz de analisar quem começou a luta. Ao lado dele tem um rifle, com as digitais da Rose e sem as digitais do Chris e perto do rifle temos um homem morto, o Walter com um ângulo da bala que só indicaria o suicídio. O carro batido dirigido por Chris tinha marcas de tiro da Rose, marcas indicando que ela atirou nele enquanto ele estava dirigindo para longe dela e portanto não era um contexto de autodefesa. A única casa por perto é a casa de Rose, que apesar de possivelmente estar incendiada, ainda tem a passagem secreta para o laboratório secreto aberta, provando a existência do mesmo. Se o procedimento padrão da polícia fosse prender os dois, interrogá-los separadamente e ver qual história bate com as evidências, então Chris estaria salvo, e se fossem dois homens brancos lutando no climax de um filme poderíamos ter certeza de que quem sorriria seria o herói do filme.
Mas nós sabemos qual é o procedimento padrão do policial que vê um homem negro estrangulando uma mulher branca ferida. O Chris sabe e a Rose sabe, e em nenhum momento ninguém tem a menor dúvida de qual seria o resultado daquele encontro. E isso é o tal do racismo sistemático que um negro nunca vai ser capaz de reproduzir com um branco. E que o cara que comentou meu texto de Zootopia confundiu com uma questão de “mas será que vai sair um policial com preconceitos ou um policial sem preconceitos desse carro?”.
E isso volta ao final de Night of the Living Dead, o medo de ser morto pela polícia por ser confundido com uma pessoa perigosa. Um medo com os quais os negros convivem diariamente. E principalmente a noção de que pra Chris, enfrentar uma família de cientistas racistas é possível, mas enfrentar o poder do sistema não é. Ele saiu do filme de terror, e voltou à realidade, e na realidade, não importa se ele conseguiu se defender da facada ou se ele colocou algodão no ouvido, na realidade ele é morto pela polícia.
Isso é muito diferente do Stepford Wives, onde Joanna não vence os homens de Stepford pra então fugir e ser rendida pelo sistema machista de todos os EUA. Ela perde em Stepford mesmo, e é derrotada pelos próprios vilões do filme. Derrotar os vilões do filme pra ser morto pelo mundo real é muito, mas muito mais deprimente.
Mas como eu já estabeleci, o Jordan Peele faz sua intertextualidade no estilo bait-and-switch, ou seja, ele nos passa o sentimento de um filme, mas então nos apresenta a um desfecho diferente, e quem sai do carro, é o amigo de Chris, Rod, que trabalha do centro de busca aos terroristas.
Chris é salvo pelo amigo e escapa com vida. Final relativamente feliz, exceto pelo fato de que ele ainda está hipnotizado e perderá a consciência caso escute o barulho de uma colher na xícara de chá. E ele acabou de ter o que seguramente é o término de relacionamento mais traumático da vida inteira dele, e eu não duvido que ele vá ter problemas de confiança pelo resto da vida, e o mais importante. O brother dele e do Rod que teve o corpo roubado por um cara chamado Logan ainda teve o corpo roubado.
Aliás, final feliz é o cacete. O Chris escapou com vida e vai poder voltar pra casa, mas porra, que tenso tudo isso.
Se bem que o diretor quase colocou um final em que o Chris de fato vai preso pela polícia (não morto, preso) e é visitado pelo Rod na cadeia. O Jordan Peele resolveu mudar o final para um mais otimista em respeito a quem devido a diversas mortes de negros pela polícia filmadas e registradas nos últimos anos, não quisesse levar essa porrada. Exatamente a mesma atitude que o George Romero já admitiu que teria se ele não tivesse percebido que o final dele com um negro ganha outro peso só depois que o filme já tinha estreado.
Eu linkaria esse final, mas os caçadores de pirataria estão tirando do youtube toda hora, então já sabem, né?
Enfim, o Tarantino tem esse quote famoso em que ele fala que ele não foi pra faculdade de cinema, ele foi pro cinema, e isso tem um fundo de verdade. Quanto mais repertório um diretor tem, mais ele consegue dialogar com os filmes do passado, em especial filmes que marcaram suas épocas (como é o caso de todos os citados aqui), mais ele consegue entender as artimanhas e a linguagem que o expectador espera de seu filme e brincar com a expectativa do seu público.
E isso não implica em nenhum sacrifício de originalidade do filme. Eu fiz parecer aqui que 80% dos elementos do filme vinham de outro lugar, mas mesmo assim o filme é notavelmente original. É um suspense que soa como algo diferente de tudo que tem sido feito, e não duvido que pavimente o caminho para uma futura onda de suspenses que trabalhe relações raciais, agora que o filme se provou um sucesso financeiro imenso, como um verdadeiro ovo de colombo.
O Tarantino mesmo, 90% dos filmes dele são colagens dos filmes que inspiraram e marcaram ele, e mesmo assim eles sempre surgem como obras únicas onde mesmo as piores são notáveis por serem muito originais.
E mais do que isso. Todos esses filmes foram lançados 40 anos atrás e foram lançados durante um contexto horrível na realidade americana, e dialogaram com esse contexto, seja em uma esperança de mudança, em uma esperança de conscientização da situação, ou mesmo um diálogo acidental que traga a tona os horrores da realidade da época. E bem, 40 anos depois Get Out ajuda a evidenciar como apesar de vivermos em um contexto diferente, o nosso contexto permite que esses filmes de 40 anos atrás sigam dialogando com a nossa realidade. Permitir essa percepção também é um dos méritos de uma boa intertextualidade.
De resto quero recomendar esse vídeo do canal Wisecrack sobre o filme, pois é um vídeo excelente e quero divulgar como esse canal é bom. Tem legendas em português e ajuda a pensar o conteúdo filosófico do filme.