Vamos falar sobre animações para adultos? E não do estilo Adventure Time ou Steven Universe que aborda temas com maturidade por trás de sua estética infantil, mas que ainda têm seu marketing pensado para crianças. Refiro-me aos que se vendem como desenhos adultos mesmo, que crianças não deviam assistir, pois seriam expostas à palavrões, sexo, violência, piadas da cultura pop e o pior de tudo… seriam expostas ao politicamente incorreto.
Sim, pois, essas animações costumam ter um bom apoio no humor politicamente incorreto e parte disso é porque justamente isso ajuda a série a se firmar como algo não infantil. Afinal, desenhos infantis nunca apelam para comentários politicamente incorretos (ou esperamos que não apele). Além de ser um dos estilos de humores mais populares da televisão, pro bem e pro mal.
E um humor politicamente incorreto pode vir até nós com um protagonista politicamente incorreto. Protagonistas de animações adultas têm o costume de ser retratados de uma maneira onde eles se destacam notavelmente pelas suas características negativas, sendo eles personagens nocivos para todos à sua volta. Afinal, se o humor deriva da desgraça, nós riremos da desgraça que ele causa aos outros, e da desgraça que causam a ele, pois ele merece.
Isso pode vir em diversos moldes. Homer Simpson, Peter Griffin ou Capitão Murphy são ignorantes, irresponsáveis, egoístas e imaturos. Eles são muito infantis e geralmente prejudicam a própria família com ideias ruins que vieram da sua própria burrice, mas podemos ver que no fundo eles têm bom coração – esse é o molde do protagonista que no fundo ainda precisa ter a simpatia do expectador. Já protagonistas como Duckman, Eric Cartman ou Archer vem no molde “pior ser humano existente”: eles são pessoas egoístas que só pensam em si mesmos, não hesitam em propositalmente prejudicar os outros ao seu redor, não tem senso de moral e ética nenhum, xingam os demais sempre que possível e definitivamente não merecem que nada de bom ocorra com eles. Esse segundo tipo de protagonista tem, geralmente em seu ponto de redenção, a noção de que em algum momento na vida deles, algo quebrou a alma deles para transformá-los na pessoa horrível que eles são, o que daria o mínimo de simpatia dele ao expectador, mas não passa muito disso, são pessoas que não prestam.
E se deixar correr a lista do segundo tipo, ela é imensa, Master Shake de Aqua Teeen Hunger Force, Bender de Futurama, Stan de American Dad, Rick de Rick and Morty, Rusty de The Venture Bros, Zorak, de Space Ghost Coast to Coast, mesmo Fred Flinstone não estava acima de ser oportunista e abusivo de sua família e melhor amigo, pensando sempre em si mesmo. E recentemente podemos observar o protagonista da animação exclusiva do Netflix: Bojack Horseman.
Bojack nos apresenta uma nova visão sob essa noção do personagem notavelmente egoísta e desagradável, acrescentando um elemento a mais: o ódio que Bojack sente de si mesmo. Bojack sabe que ele é uma pessoa horrível e que ninguém deveria gostar dele, e ele odeia esse lado de si mesmo, ele se olha no espelho e sente vergonha e sofre, porém ele não consegue deixar de ser quem ele é meramente se odiando. É difícil para Bojack mudar mesmo sabendo que deveria. Bojack é infeliz com a vida que ele vive e almeja mais que tudo ser feliz, o que ele acredita que ele conseguirá ser se as pessoas começarem a gostar dele. Porém, ele é autodestrutivo e impede a própria felicidade, sua personalidade afasta todos de gostarem dele e quando alguém chega perto demais dele, ele sabota essa relação.
Isso não nega todos os defeitos dele, não é uma maneira de fazer o oposto do que o Archer faria. Bojack ainda é um personagem egoísta típico de animações adultas, mas essa camada extra de ódio por si mesmo, permite uma desconstrução no arquétipo típico que facilita muito que o público se identifique com Bojack e que faz com que sua personalidade possa ser usada não só para comédia, como para o drama.
Bojack Horseman é um ator de Hollywood. Nos anos 90 ele protagonizou a sitcon popular Horsin’ Around, que lhe rendeu fama, e lhe rendeu uma fortuna imensa. Permitindo que hoje ele viva em uma casa luxuosa. Ele divide sua casa com Todd, um jovem preguiçoso que ele sustenta e deixa ficar na sua casa. E ele agora como uma celebridade que só foi realmente grande vinte anos atrás, quer voltar a ter relevância escrevendo uma autobiografia. Para isso ele contratou a escritora fantasma Diane Nguyen. Além de seu egoismo, de seu narcisismo e de um constante ódio direcionado a si mesmo, outra característica constante de Bojack é o fato de que ele constantemente confunde a maneira como a vida funciona em uma sitcom com a vida real.
Ele é obcecado com Horsin’ Around (como o bom narcisista que ele é), e constantemente presume que problemas diários que ele enfrenta podem ser resolvidos com o mesmo tipo de simplicidade e facilidade que os problemas de seu personagem eram resolvidos na sitcom. Mas claro que isso não é verdade, pois ele não vive em uma sitcom, e sim no mundo real.
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Digo… ele vive em uma sitcom, mas em outra sitcom, e é justamente por isso que a desconstrução é importante, para deixar claro que mesmo sendo uma sitcom, Bojack Horseman não funciona sob lógica de sitcom. Diferente de uma sitcom normal, acontecimentos têm consequências, os personagens são todos bem mais do que somente tipos, são complexos e elaborados, e as relações entre os personagens não são simples. Isso vale para a personalidade de Bojack, que a primeira vista parece com um típico protagonista cuzão, mas aos poucos se revela mais complexo e mais trágico; como também vale para as relações entre os personagens.
Por exemplo, a escritora da autobiografia de Bojack, Diane Nguyen, é a namorada de Mr. Peanutbutter, um ator que nos anos 90 protagonizou uma sitcom que era uma cópia descarada da sitcom de Bojack. Os dois ficaram famosos na mesma época, iam para os mesmos eventos e se tornaram próximos. Mr. Peanutbutter é um cara amigável, ele é simpático, tenta agradar, tenta fazer rir e é um notório cara legal que só quer alegrar o ambiente, e ele adora o Bojack e o trata como um melhor amigo. Já Bojack por outro lado odeia Mr. Peanutbutter, o acha irritante, e não suporta sua companhia. Essa relação da melhor-amizade unilateral é um clássico da comédia que pode ser vista em várias animações, como a entre Squidward e Spongebob em Spongebob Squarepants ou entre Homer Simpson e Ned Flanders em The Simpsons, para mencionar uma animação adulta.
Porém, Bojack Horseman não usa esse artifício clássico somente na piada da unilateralidade da amizade, ele adiciona camadas de drama na relação entre eles. O motivo pelo qual Bojack odeia Mr. Peanutbutter, é porque Bojack inveja a maneira como Mr. Peanutbutter consegue ser genuinamente feliz com sua vida, enquanto ele se sente constantemente no fundo do poço. Ao mesmo tempo, Mr. Peanutbutter não é meramente um cara muito otimista, sua personalidade vem do fato de que ele é tão descrente no mundo quanto Bojack, o que é justificavel, já que tiveram origens parecidas, e a série enfatiza bastante o quanto Hollywood e o show-business quebram a alma das pessoas, porém enquanto Bojack se refugiou em um enorme cinismo, Mr. Peanutbutter decidiu adotar a postura de tentar se distrair da vida com assuntos imediatos e sem importância o máximo que puder, para não ter que lidar com o mundo. Por isso ele parece sempre de bom humor.
E não é só isso. Como a unilateralidade da relação não é um elefante na sala, eles a abordam diretamente; na segunda temporada, Bojack finalmente explode com Mr. Peanutbutter e o amigo resolve revidar e ter uma grande DR com Bojack em rede nacional (uma vez que Bojack perdeu a linha em um programa de televisão ao vivo), onde Bojack desabafa toda a inveja que sente de Mr. Peanutbutter e Mr. Peanutbutter responde como sempre notou a hostilidade de Bojack e ainda sim quer fazer a amizade funcionar, pois ele se importa.
Detalhes que tornam o conflito entre as personalidades dos dois rivais algo além de um bobão otimista que se considera o melhor amigo de um ranzinza, mostrando que eles são bem mais do que isso, fazem a dinâmica entre os dois soar mais próxima de nós, sem deixar de ser a dinâmica clássica. E é isso que a desconstrução faz, não é desfazer os clichês ou negá-los, é ao contrário é colocar mais camadas de realismo (ou ao menos, verossimilhança) nos clichês para nos fazer pensar a respeito do que há por trás deles.
Outra dinâmica de personagens que é ao mesmo tempo, clássica e repensada é a dinâmica entre Bojack e Todd. Todd é um jovem que mora na casa de Bojack. Ele mora lá faz anos, não paga despeza nenhuma, é sustentado por Bojack, é imaturo e aparenta não ter a menor intenção de ir embora. Bojack se incomoda com Todd, pois Todd é otimista, Todd é burro, Todd é carente e Todd deixa as coisas dele espalhadas pela casa. Bojack constantemente xinga Todd, e fala sobre como ele é imprestável. Até ai, típico, agora, por que Bojack deixou Todd começar a morar lá em primeiro lugar?
Vejam bem, Bojack achou que Todd era um jovem gay que havia sido expulso de casa, no dia que eles se conheceram. E embora a série não tenha abordado explicitamente a relação, esse é um tema sensível para Bojack.
No passado o melhor amigo de Bojack, e também seu mentor e sua porta de entrada para o mundo da televisão, foi um cara chamado Herb Kazzaz que produziu Horsin’ Around. Herb foi demitido do casal de televisão quando descobriram que ele era gay, e em vez de apoiar o amigo, Bojack resolveu ficar na dele para não perder a carreira, e abandonou Herb sozinho e sem apoio enquanto a imprensa destruía ele e o perseguia por ser gay. Essa é uma das maiores culpas que Bojack carrega em suas costas, tanto que ele passa boa parte da primeira temporada tentando se redimir com Herb, sem sucesso, mas ele sabe que o que ele fez foi egoísta e escroto e que ele nunca vai conseguir desfazer a mancada que ele deu, sabendo que Herb agora está diagnosticado com cancer e que ele pode não ter outra chance de se redimir. Porém ele não consegue, Herb segue odiando ele e passa o resto dos seus dias com rancor de Bojack.
Porém quando ele achou que tinha um jovem gay sem ter onde morar e não tendo com quem contar, ele abriu a própria casa. E ao descobrir que sua primeira impressão do cara foi falsa e que Todd na verdade foi expulso de casa por passar o dia inteiro jogando videogame sem trabalhar, ele passou a tratá-lo feito um parasita. Mas a relação dos dois começou, pois é possível que Bojack tenha ajudado Todd como maneira de compensar seu maior arrependimento, de não ter ajudado Herb.
Por outro lado, Bojack é um homem extremamente solitário que por mais que se incomode com a presença de Todd, estar sozinho o assusta muito mais. Então ele ativamente tenta impedir que Todd saia de sua casa sempre que ele tem a chance, pois ele não suportaria ter como única companhia, a si mesmo.
Bojack passa a primeira temporada inteira tentando escrever sua autobiografia, num esforço imenso de que as pessoas possam gostar dele. Mas quando Diane termina de escrever o livro, ele odeia o resultado, pois viu no livro uma pessoa que ele despreza, que não é a pessoa que ele quer que os outros vejam. Ele viu alguém que ele não admira e que ele acha que não merece ser admirado, e o pior, é que ele sabe que aquilo é verdade. Porém, o livro acaba dando a ele uma nova fama e uma nova cara na mídia e a simpatia de muita gente, porém ele continua sendo uma pessoa desagradável, e continua infeliz.
Bojack provavelmente vai ser infeliz para sempre. Após ler o livro que Diane escreveu ele só consegue pensar que se é essa a imagem que a mulher que melhor conhece ele tem dele, então só pode ser verdade, e com isso vinha a pergunta se era tarde demais, ou se ele estava fadado a ser um homem amargurado pela culpa de todos que ele prejudicou com seu egoismo e que sabe que quando tiver a chance novamente ele será egoísta novamente.
Na segunda temporada ele começa o primeiro episódio decidindo adotar uma nova postura de otimismo na vida, e essa nova postura dura por uns dias até a sua mãe lembrá-lo de que ele vai ser infeliz pra sempre e que ele não tem chance de mudar, mesmo que ele queira.
Ele começa a trabalhar no filme que ele sempre sonhou, interpretando seu herói Secretariat mas abandona as filmagens por diferenças criativas com o produtor. Ele começa a namorar uma garota muito de bem com a vida, e funciona por um tempo, até a personalidade dele ficar no caminho e eles terminarem. Ele tenta reaver seu amor da juventude que ele achou que nunca mais recuperaria, e arruína todas as chances de sequer ser amigo dela de novo, no que talvez tenha sido a maior escrotisse que ele já cometeu na série.
Ele é auto-destrutivo, e toda chance que ele tiver de obter respeito próprio e de sentir bem consigo mesmo, ele mesmo vai destruir com as próprias mãos, e vai se odiar por isso. Ele sabe analisar muito bem o motivo pelo qual ele faz as coisas que ele faz, mas ele as faz mesmo assim então pouco adianta para ele ver a origem de sua canalhice se ele não pode se consertar.
Um dos elementos de Bojack Horseman que mais chamam a atenção, é um elemento que já nem devia mais chamar tanto a atenção, é a continuidade. Claro que hoje em dia, a grande maioria dos desenhos animados que não estão presos na lógica de produção dos anos 1990, tem continuidade. Rick and Morty tem continuidade. Archer tem continuidade. Venture Bros tem muita continuidade. Mas a continuidade de Bojack é interessante.
Além de ter arcos de histórias, como a autobiografia ou o filme do Secretariat no qual Bojack atua, além de ter vários episódios mencionando fatos e acontecimentos de episódios passados, além de ter vários personagens e piadas retornando depois de uns episódios, além disso, tem um nível de continuidade discreta. O cenário frequentemente sofre danos por conta dos episódios e isso é mantido sutilmente. Não me refiro só ao D do letreiro de Hollywood que Bojack rouba e desse ponto em diante a série passa a se referir ao local como Hollywoo somente. Refiro-me ao sofá em que Sarah Lynn ateia fogo e em todo outro episódio que retoma, o sofá ainda está quebrado. Ou a cama que Todd quebra que em todo episódio segue quebrada até em um episódio muito a frente, Bojack consertá-la. A série se esforça para mostrar que ao contrário de sitcons, na vida de Bojack, as ações têm consequências, e tudo o que acontece tem impacto nos episódios futuros, seja alterando a história ou meramente na forma de uma mobília que não foi consertada.
Bojack Horseman faz um esforço tão sincero em fazer seu protagonista parecer humano, em fazer ele parecer uma versão mais identificável e verossímil do clássico babaca das sitcons, de fazer a série transitar entre gêneros, alternando entre comédia e drama sem medo nenhum, e em deixar o ambiente muito menos caricato do que o esperado, que eles meio que ganham carta branca para fazer metade do elenco ser formado por animais antropomórficos sem absolutamente nenhum motivo por trás disso a não ser uma preferência estética.
A primeira série animada do Netflix, a menos de uma semana depois da estreia já estava estabelecida o suficiente para ganhar uma segunda temporada, e certamente um marco para a animação para adultos dentre as opções atuais.