Comecemos esse post com uma história real. Anos atrás eu trabalhava em uma locadora de meu bairro, que hoje fechou, e lá eu recomendava filmes para clientes. E um cliente me pediu a indicação de uma comédia que fosse alternativa, inteligente e fora dos padrões de comédia de hollywood. E eu aproveitei a deixa para indicar o meu filme favorito de um dos meus diretores favoritos. The Royal Tennenbaums.
Eu expliquei a história, o estilo de humor, e o cliente se interessou, até pegar a capa e notar que no filme tinha um elemento hediondo e contrário ao que ele queria: O Ben Stiller, ator de comédias hollywoodianas, notável por filmes como Meet the Parents, Zoolander, Tropic Thunder e Night at the Museum. E a recusa a ver filmes protagonizados por Gaylord Focker o impediu de levar o filme pra casa.
O que houve? Simples. O cliente queria um filme em um certo perfil. E Ben Stiller faz filmes em outro perfil. E o cliente assumiu que um filme com Ben Stiller jamais teria o perfil que ele queria. Pois é um ator marcado por comédias comerciais. Comédias escrachadas. Nada que pudesse ser chamado de “bom cinema” ou que pudesse ser apreciado artisticamente.
O que eu quero falar no post de hoje é sobre essa linha. A linha que separa filmes feitos para serem apreciados, de filmes feitos para gerar muito dinheiro. De um lado temos arte e do outro temos comércio. E um ator que trabalhe com filmes, pode oscilar entre os dois lados da linha, ou isso é impossível?
Eu já adianto, eu não acredito nessa linha. Não acredito que o fator comercial possa desmerecer o conteúdo artístico de um filme, tampouco seu elenco. Aqui no blog eu não tenho problemas de falar de filmes de comédia ou de desenhos animados, com o mesmo zelo e foco que eu daria para falar de Citizen Kane. Toda obra fictícia é uma obra de arte e pode ser analisada como uma, independente das motivações pela qual foi feita. E o fato de uma obra ter sido feita com propósitos comerciais nunca vai anular qualquer mérito artístico que ela apresente.
E para falar sobre essa separação, quero repassar o grande ganhador do Oscar de 2015, Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance). O filme pode se destacar por ter uma história extremamente metalinguística, onde seu protagonista, interpretado por Michael Keaton, é um ator lutando para ganhar prestígio e reconhecimento no meio artístico e intelectual, apesar de seu nome ainda ser sinônimo da série de filmes de super-herói Birdman, lançada no começo dos anos 90. Igualzinho aconteceu com o próprio Michael Keaton e o Batman. Não é o único momento em que o filme vai tirar vantagem da imagem dos papéis anteriores para sua mensagem, mas eu acho que mesmo sem se perceber o quão apropriado é o elenco, o filme ainda sustenta sua mensagem muito bem na história.
O filme abre com uma epígrafe, uma frase que vamos ler antes de ver o filme para nos ajudar a pensar sobre o que estamos prestes a ver. No caso a epígrafe do filme é o seguinte dialogo de Raymond Carver:
Se sentir amado, é o que queremos dessa vida? É o que o protagonista Riggan Thomson mais quer. Riggan é um ator que duas décadas atrás protagonizou uma franquia de super-heróis famosa e lucrativa chamada Birdman (ei, esse é o nome do filme… um deles ao menos.), hoje, duas décadas mais velho, ele sente que ainda é marcado pelo seu papel como Birdman, e quer reinventar sua imagem como artista. Afinal, ele não quer ser visto como o Birdman pelo resto da vida. Ele quer ser amado e se sentir amado. Por isso ele precisa de prestígio. Por isso ele está produzindo uma peça inspirada no conto de Raymond Carver (ei, esse é o cara que escreveu a epígrafe que acabamos de ler), What We Talk About When We Talk About Love, onde ele é o diretor, o roteirista e o ator protagonista. Um projeto feito para colocá-lo em evidência como um artista de prestígio e afastá-lo da imagem de “ator que fez o Birdman vinte anos atrás e nunca mais fez nada.”
Na primeira cena do filme Riggan está em seu camarim, no dia que atuarão o preview da peça, meditando enquanto flutua a uma altura considerável do chão, voando com seus poderes especiais, e na sua cabeça, ele escuta a voz do Birdman, seu eterno personagem que fala com ele em sua mente.
Riggan é chamado para ensaiar, e ele odeia o ator com quem vai contracenar, e considera o ator péssimo, por isso, ele sabota um acidente de palco para esse péssimo ator ser colocado de escanteio e ser substituído de última hora.
Pelo menos Riggan afirma que foi ele quem causou o acidente, não vemos acontecer, só temos a palavra dele. Ao longo do filme vemos Riggan manipular poderes telecinéticos típicos do herói Birdman, como visto nele flutuando em seu camarim, mas o filme deixa a entender que isso é só a imaginação do protagonista e ele não tem de fato poderes. Ficou implícito que o acidente poderia ser uma manifestação dos poderes dele, mas ele pode ter sabotado o set manualmente, ou ele pode acreditar tanto em seus poderes que assumiu que o acidente e o seu desejo de ter o cara substituído não foram coincidências. Não fica claro.
Mas não importa. O ator tem que ser substituído, e Riggan conversando com seu advogado, Jake, interpretado por Zach Galiafanakis (o gordinho do The Hangover. Olha o perfil de ator que colocaram para atuar em um filme ambicioso e feito para ganhar prêmios… certamente intencional). Riggan comenta quais atores ele quer como substituto do acidentado, mas nenhum está disponível, eles têm outros filmes pra fazer. Woody Harrelson estará no próximo Hunger Games, Michael Fasbender estará na sequência da prequência de X-Men, e Jeremy Rainner estará em The Avengers 2. Ou seja, todo ator que Riggan acreditava que daria peso a sua peça estão envolvidos em mega blockbusters, sendo dois deles de super-heróis.
Riggan entra no camarim pensando em como lidar com a substituição de atores e vê na televisão uma reportagem sobre Robert Downey Jr falando sobre fazer o Iron Man, e como esse papel beneficiou a carreira dele.
Sim, Riggan não teve timing bom. Ele sente que o Birdman fodeu a carreira dele. Mas hoje em dia, blockbusters não estão fodendo a carreira dos atores mais, os atores que Riggan queria em sua peça estão todos envolvidos em filmes comerciais de super-heróis, claro que o reconhecimento que Riggan procura é o de outro público, completamente outro público. Mas ainda sim o reconhecimento que esses atores estão tendo é um que ele não possui.
No camarim de Riggan é possível ler no espelho a frase “Uma coisa é uma coisa, e não o que dizem dessa coisa.” Frase muito boa para o conflito que Riggan tem com a própria imagem. Um ator é um ator, e não a imagem que foi feita desse ator. O Downey Jr, Zach Galiafanakis e o Riggan são todos atores, não são o Homem de Ferro, o Cara do Hangover e o Birdman, levando consigo os respectivos pesos de seus papéis para tudo o que fazem. Não deviam ser ao menos. E Riggan ser destruído pela ideia de que é, é o que guia o perfil psicológico do personagem. Vendo o Downey Jr. na televisão, imediatamente a voz do Birdman na sua cabeça começa a falar do quanto eles eram melhores que ele, e podia ser um filme do Birdman fazendo milhões ao invés daquele palhaço.
Eventualmente Riggan tem que dar uma entrevista para a imprensa. E é exatamente o que todos estão pensando. Ele é bombardeado de perguntas inevitáveis como: “Pular de filmes de heróis para adaptações de Raymond Carver não é um passo grande demais pra você?” ou “Você está se envolvendo nesse projeto só para limpar a imagem de que você não teve carreira depois de Birdman?”. As entrevistas afetam Riggan, e depois que a imprensa vai embora ele decide jogar fora o quadro do Birdman que ele tem no próprio camarim.
Mas agora os ventos vão virar ao favor dele, pois aparentemente eles vão conseguir Mike Shiner pra atuar na peça substituindo o cara machucado. Ele é o namorado de Leslie, uma das atrizes da peça e ela o chamou para a peça. E Mike Shiner é um excelente ator. Riggan vai imediatamente falar com Mike. E lá está ele citando todos os grandes atores de prestígio que pisaram naquele palco antes de Riggan e que agora Riggan estará no patamar deles. Eles resolvem testar um dialogo para ver se o cara presta pro papel ou não.
Ele arrasa. Já sabia as falas de cor, deu uma leitura impressionante de como deveria ser a fala de Riggan, e atuou muito bem, e Riggan ficou confiante de que achou um fodão para seu elenco, vai falar pro seu Jake que Mike é o máximo e que a peça vai ser fenomenal, e que tudo está bem agora. Até que chega a hora de atuarem na pré-estreia.
E Mike fode completamente a pré-estreia, pois o álcool da cena foi substituído por água, e ele não está realmente se embebedando. Ele sai do personagem, briga com Riggan na frente da audiência, quebra o cenário e arruína tudo.
Riggan está puto. Riggan quer Mike fora da peça, mas Jake fala que é tarde demais ele não tem mais tempo, dinheiro nem moral para fazer outra substituição no elenco. Ele reclama com Riggan que só entrou nessa história, pois Riggan prometeu respeito e reconhecimento pra ele na área, e que agora Riggan que aja como um diretor e controle Mike.
Mas antes de enquadrar Mike, Riggan tem uma conversa com sua ex-mulher, com quem teve um filha, Sam. Conversa essa na qual é revelado que eles se separaram após Riggan ter uma reação violenta por ela não ter gostado de um dos seus papéis. Como se isso significasse que ela não o amasse. O desejo de ter reconhecimento profissional de Riggan é tão grande que ele é incapaz de se sentir amado por alguém sem este reconhecimento.
O que volta a epígrafe. O que queremos nessa vida? Nos chamar de amados e nos sentir amados.
E como de tradição, a voz do Birdman segue atormentando Thompson sobre como ele devia ter aceito fazer parte de um Reality Show para poder hoje estar sentado na grana em vez de ser o fracasso que ele é.
Agora é hora de Riggan ir colocar Mike no seu devido lugar. Mas sendo Riggan o trouxa que ele é, e Mike o arrogante que ele é, o oposto que acontece. Mike explica para Riggan sobre como ele até hoje é visto como o cara do Birdman e que popularidade não é nada perto de prestígio. Que a reputação dele está muito mais em risco que a de Riggan, uma vez que o ex-super-herói pode a qualquer momento tacar o foda-se e fazer dinheiro prostituindo o próprio nome em algo sem valor cultural. O curioso é que como já havíamos visto nos diálogos internos do protagonista com seu alter-ego sabemos que ele já acredita nisso. Mas quando um ator que possui real prestígio fala isso, soa pior.
Mas Riggan no fundo ainda ouve uma voz em sua cabeça falando que ele se preocupa demais com prestígio, mas que podia estar é explorando a franquia Birdman até a última gota e que isso seria bem melhor do que ser um ator pretensioso querendo ser louvado por críticos. Mike já não tem isso, ele acha que ator que é ator se envolve com obras de verdade e cuida da reputação. Ambos vêm com muita clareza a linha no chão que separa o ator de arte do ator de entretenimento, e se preocupam muito com de que lado da linha eles estão.
Em um bar, uma aleatória tira uma foto com Riggan toda feliz de ter uma foto com o Birdman enquanto seu filho pergunta “quem é esse cara?”
Mike aponta para uma crítica e explica para seu diretor que ela é quem escreverá a crítica da estreia da peça e que a única opinião que importa é a dela, pois é a opinião que definirá se a peça é digna ou não é digna.
Pois isso é o tal do prestígio, isso é arte, é a opinião de pessoas especializadas nos explicando quem presta e quem não presta. Se o crítico certo não gosta de você, então foda-se, pois não existe subjetividade no reconhecimento artístico. Se a crítica odiar a peça, a carreira do Riggan vai pro ralo independente se a peça for realmente boa ou não.
E é nessa lógica que a divisão entre entretenimento e arte opera. É o que mantém filmes como Birdman separados de peças como What We Talk About When We Talk About Love.
Antes de sair do bar, Mike e Tabitha, a crítica, trocam algumas palavras. Tabitha praticamente pergunta se Mike começou a se misturar com a gentalha, e Mike defende seu colega de profissão diminuindo a profissão de crítico e falando que Riggan está arriscando tudo na peça e Tabitha não está arriscando nada escrevendo sobre ela.
Sim, ele pode antagonizar Riggan na cara dele o quanto quiser, mas na hora de enfrentar uma crítica, ele e Riggan são irmãos de luta e a crítica é o inimigo. E é assim que o mundo funciona. O inimigo do seu inimigo é seu amigo. Mike está mais confiante, mas não está mais confortável que Riggan sabendo que aquela mulher carrega o destino da carreira dele na caneta dela.
Agora Riggan vai conversar com Sam, sua filha, onde o que ele escuta é o exato oposto do que ele escuta de Mike, mas pega na ferida da mesma maneira. Ele zomba de Sam e de seus amigos jovens e sobre como eles só importam com o que é viral e o que é atual na internet e que o trabalho dele é diferente pois realmente importa. Mas importa pra quem? Sam esfrega na cara do pai que aquela peça só é importante para homens brancos e ricos que tem poucas preocupações com um mundo fora de discussões intelectuais. Que a verdade é que o resto do mundo está pouco se fodendo a respeito do quão densa uma peça inspirada em Raymond Carver pode ser. Que Riggan cospe em blogueiros e em redes sociais como se aquele mundo não fizesse diferença no mundo, mas que são justamente os jovens que ele despreza que estão fazendo diferença real no que é relevante culturalmente através desses meios. Esse é um mundo que aceitaria o Birdman se Riggan não desse as costas pras redes sociais e cuspissem para a aprovação desse público menor. E quando uma mulher vem tietar ele na frente do filho, o filho sequer reconhece o cara.
E é por isso que o Robert Downey Jr tem reconhecimento e Riggan não. Claro, talvez ele seja odiado pela Tabitha, mas está recebendo reconhecimento real de todo um público menos elitista que o admira por ver nele um real talento. E Riggan teria isso se não achasse que a aprovação de Tabithas são as únicas que valem. E o que lhe resta é ver com inveja o Robert Downey Jr dar coletivas de imprensa na televisão e ouvir decepcionado que Michael Fassbender não vai atuar em sua peça, pois vai atuar em X-Men.
Agora que já jogaram na cara dele que ele não é um ator de prestígio nem um ator popular entre os jovens, ele vai para a segunda pré-estreia da peça. Numa cena especifica em que o personagem de Riggan deveria flagrar a personagem de Leslie com o personagem de Mike na cama. E Mike tem uma péssima “brilhante” ideia: transar de verdade com Leslie na cena para dar mais realismo para a cena. Ele não consegue, a cena é um sucesso e ela fica putíssima, porque quase foi estuprada pelo namorado na frente de 800 estranhos em nome da arte.
Quando a cena acaba, Leslie termina com Mike, manda ele se foder, fica puta sobre como ele não transa com ela faz meses mas sente tesão no palco, e isso é um reflexo de como ele faz questão de tudo ser sempre bem real no palco, mas ele é uma pessoa patética e mentirosa na vida pessoal.
Leslie vai em sue camarim chorar e lamentar sobre como seu sonho sempre foi ser uma atriz da Broadway, mas agora que ela está na Broadway, ela não sente que realizou esse sonho. Que não é uma atriz, que é só uma menininha sonhando. Não sente que se tornou o que ela imaginava ser. A constante pressão de ser um ator de verdade não afeta só Riggan, Leslie e Mike cada um do seu jeito, sofrem dessa pressão constantemente. E o nome Broadway ajuda a manter essa pressão. Afinal o teatro é mais prestigiado e artístico que o cinema.
Ah sim, e teve essa cena de beijo lésbico, que não é nem um pouco relevante, mas sempre diverge a atenção do que estava rolando antes.
Mike frustrado por não ter conseguido fazer as pazes com Leslie (porra, o que ele achava?), vai descontar em Riggan falar da falta de realismo da arma usada na cena, e como aquilo estragou quase tudo. E frustrado vai pro telhado do teatro onde encontra Sam.
Eles dão uma flertada, apesar da diferença de idade, e jogam verdade ou desafio, e Sam pergunta se Mike transaria com ela, e a resposta de Mike era que não, mas que não o faria por medo de broxar. O que a garota achou estranho, pois não pareceu um problema quando ele tentou ter sexo explícito no palco, mas para Mike enquanto no palco nada é um problema pra ele. Ele é um ator que só vive e sente de verdade no palco e na vida real, onde importa não é absolutamente nada.
No dia seguinte, Riggan acorda com um tapa na cara, Mike dando uma entrevista na primeira página do caderno de cultura no jornal, onde ele desmerece Riggan e rouba os holofotes para si. Riggan fica puto, eles brigam e então Riggan começa a destruir tudo em seu camarin usando seus “poderes” enquanto ele briga com a voz do Birdman eternamente em sua cabeça.
Birdman insiste nos mesmos pontos, que o lugar deles não é ali, que sempre podem voltar pro mundo do entretenimento e atingir fama e fortuna. Riggan discorda, ele acha que os tempos mudaram, que não é mais 1992, que ele não tem mais forma física para aquilo. E Birdman insiste. Jake vê o surto de Riggan e dá uma acalmada nele, anunciando quanta expectativa as pessoas estão pondo na peça, e como muita gente confia que vai sair coisas boas e novas oportunidades surgirão, e Riggan se acalma ouvindo seu melhor amigo. Leslie fala com Riggan também, se desculpa por colocar Mike na peça, e os dois dividem uma ansiosidade e um nervosismo, já que para ambos é a primeira vez deles na Broadway, e apesar de toda a pressão eles estão empolgados.
Mais um momento de flerte no telhado no teatro e agora Mike e Sam estão ficando. Mike vê os dois se pegando no intervalo da terceira pré-estreia (são três antes da estreia), fica levemente alterado e vai pro lado de fora do teatro fumar um pouco antes da sua próxima cena. Porém a porta se fecha prendendo o roupão dele. Após uma breve luta com a porta, Riggan deixa o roupão para trás e de cueca, dá a volta para entrar pela frente do teatro.
Todo mundo rapidamente nota que o ator de Birdman está andando de cueca pela Broadway. Gritam “Birdman” empolgados quando ele passa e pedem autógrafos. Tiram fotos e filmam. Alguns falam que os filmes são uma merda, mas todos se empolgam. Ele passa pela multidão, e entra em cena, pela plateia, usando uma cueca e uma peruca que ele tinha em mãos, e começa a atuar. Sem figurino, fora do palco e apontando o dedo para simular a arma que o personagem deveria ter em mãos, ele começou a atuar.
Eu adoro isso. Pessoalmente sou contra a ideia de que uma narrativa tem que ser visualmente realista para ser boa, e que o Mike precisa que a arma pareça uma arma e que a bebida seja bebida de verdade. Mas se o ator for foda mesmo e a narrativa estiver bem contada, o cara pode aparecer sem figurino nem objeto de cena e apresentar uma peça foda.
E infelizmente o filme não mostra se essa pré-estreia teve uma boa repercussão, uma pena, mas aparentemente, Sam gostou e supôs que o resto da plateia gostou também. Ela mostra ao pai como ele se tornou viral na internet, com vídeos dele de cueca andando pela Broadway no Youtube, e que isso tem poder, e tem mesmo, pois agora toda a mídia está por causa do viral, comentando sobre o retorno dele e fazendo uma puta publicidade para ele.
O que deveria ser bom, não? Ia colocar os holofotes nele e na peça, certo? Na verdade isso não faz diferença nenhuma. Absolutamente nenhuma. Pois Riggan no bar conversa com Tabitha sobre como será a noite de abertura da peça no dia seguinte, e Tabitha é bem franca, ela vai escrever uma crítica péssima e destruir a peça, independente do que ela vir, pois pra ela, mais importante que o conteúdo da peça, é por Riggan em seu lugar. Riggan não é um ator, é uma celebridade. Riggan vem do hediondo mundo do cinema, onde tudo é comercial e não existe arte real, pois tudo é medido em dinheiro feito no fim de semana. E o teatro é para gente digna, e isso é algo que Riggan jamais será, por isso ela propositalmente vai fazer tudo que estiver em seu poder para não deixar ele brilhar nos palcos.
Riggan critica a desigualdade de poder entre ela e os atores da mesma maneira que Mike fez, como ela não arrisca absolutamente nada e ainda sim é responsável pelo futuro de atores que estão apostando absolutamente tudo nos palcos, por um prazer sádico de destruir aquilo que desagrada ela.
Quem viu Ratatouille, deve lembrar do momento de redenção do antagonista do filme, um crítico de restaurante, ser justamente quando ele admite para si mesmo de como ele se perdeu na sensação de poder que ele possui sobre os chefs que avalia, do quanto ele jamais arriscou nada, e do quanto prazer ele sentia em exaltar pontos negativos. Em Birdman é o mesmo caso, e da mesma maneira que Anton Ego achava que a culinária era uma arte que não servia para a gentalha, Tabitha acha que o teatro é uma arte especial, que não serve para a gentalha.
Ela está rejeitando um ator de filme de super-heróis, mas ela rejeitaria facilmente o DiCaprio ou o Christian Bale ou mesmo um Daniel Day Lewis, por fazerem parte de um sistema que é não artístico por definição. Como se a Broadway não pudesse ser palco de produções extremamente comerciais e super-produzidas feito o Rei Leão.
É uma divisão falaciosa que Tabitha determina, e que influencia tudo o que consegue ser produzido. Dentro do cinema existe a diferença entre filme de arte e filme comercial, mas mesmo um filme de arte é menos arte do que uma peça de teatro, pois o teatro é uma mídia de arte enquanto o cinema é uma mídia comercial. É uma constante pressão em não se vender pro comércio e geralmente é determinado quem pertence a qual grupo pela origem da obra e não pelo seu conteúdo em si. What We Talk About When We Talk About Love é não-artístico por ter sido dirigida pelo cara do Birdman, não por seu conteúdo.
Voltando ao filme: Riggan está quebrado pelas palavras de Tabitha, afogou seus problemas em álcool e dormiu nas ruas, ele acorda com a voz do Birdman em sua cabeça. Birdman fala o mesmo que repetiu o filme inteiro. Enaltecendo como foda mesmo era ser um herói. Só que com duas diferenças, agora o Birdman aparece em pessoa para falar isso, não é meramente uma voz. E agora Riggan entra no papo dele. Ele usa seus poderes em público não para destruir coisas como usou o filme inteiro, quebrando seu camarim com poderes mentais. Ele invoca um meteoro em um carro, pois ele pode, e logo vem a polícia e helicópteros lutar com um pássaro-robô. E é isso, aquilo é o que Riggan é, ele algo épico maior que qualquer coisa. Riggan usa seus poderes não para descontar sua raiva, mas por orgulho, pois ele sabe que os filmes que ele faziam eram fodas e tinham a capacidade de empolgar as pessoas e fazê-las esquecerem do quão patéticas são vendo algo realmente incrível. Ele voa até o topo de um prédio e encara a possibilidade de morrer.
Claro que Riggan não tem esses poderes, é tudo a imaginação dele, um sinal do quanto a vergonha que ele sente do Birdman, é algo imposto, mas ele sabe que os filmes eram do caralho, e que podiam continuar sendo bons até hoje, com explosões, e batalhas, e ação e um orçamento bilionário que ia fazer três vezes o que gastou no primeiro fim de semana. No fundo ele tem orgulho disso tudo. Mas o meio onde ele quer brilhar, não tem, por isso a vergonha, por isso tudo o que resta desse orgulho, é a constante voz em sua consciência dizendo que ele devia fazer o que gosta.
E agora ele está no topo de um prédio com a maior cara de quem vai se suicidar. E quando perguntam se ele tem algum lugar para ir, ele responde que tem sim, e salta do prédio. Mas não para morrer, para voar, ele voa até o teatro, e ri enquanto voa. E Birdman fala para ele enquanto ele voa rindo “Viu? É aqui que você pertence. Acima de todos eles.”
A peça estreia, finalmente!
E está indo muito bem. O primeiro ato foi um sucesso, o camarim de Riggan está cheio de flores, e ele está calmo. Ele é visitado pela sua ex-esposa para quem ele confessa que está calmo por causa de uma voz em sua cabeça que lhe diz a verdade, ele lamenta não ter sido um pai melhor para Sam, e eles se beijam de novo depois de tanto tempo. Quando Riggan está prestes a entrar em cena, ele pega uma arma de verdade, como Mike sugeriu que ele fizesse. Ele abre a porta usando sua telecinese e vai pro palco.
E durante a cena em que seu personagem deveria atirar na própria cabeça, Riggan dispara contra a própria cabeça, e se mata. O suicídio que ele quase cometeu em cima daquele prédio enquanto fantasiava, ele cometeu no palco na frente de todos, atuando na peça na qual ele se empenhou tanto.
E a audiência vai a loucura. Aplaudem e elogiam. Todos adoraram a peça, que terminou com uma bala na cabeça do diretor/roteirista/ator.
Mas ele não morreu!!! Viva!
Ele acorda em uma cama de hospital onde Jake entra com o jornal. Onde continua uma crítica no jornal entitulada The Unexpected Virtue of Ignorance (ei, esse é o outro nome do filme). Onde Tabitha enaltece o quanto a cena final do tiro subiu o nível das peças da Broadway com o realismo e sacrifício feito pela arte. Mesmo ela dizendo que ia destruir a peça, o suicídio de Riggan fez ela dar o braço a torcer e ela celebrou o filme.
Agora, vamos falar do título: o filme não chama só Birdman, chama Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), sendo Birdman a franquia de filmes de herói e The Unexpected Virtue of Ignorance a aceitação dele entre o meio intelectual. O ou entre os dois termos é a dualidade e o conflito de Riggan. Ele é um ator elogiado pela Tabitha ou ele é o Birdman, qual dos dois é o que ele realmente é? Ele é um cara numa roupa de pássaro ou um ator que adapta Raymon Carver? Ele é um ídolo do entretenimento ou um ator que sangra no palco em prol de sua arte?
Qual dos dois ele é? Bem… essa divisão entre qual dos dois é uma construção, uma linha que traçaram na areia onde forçaram ele a se encaixar. Mas na verdade ele é os dois. A divisão real só existe quando Tabithas, Mikes ou mesmo a voz do Birdman falam que existe. Riggan foi amado nos dois meios, pois ele é um ator, ele produz arte, seja fazendo milhões vibrarem em Birdman ou fazendo centenas aplaudirem de pé What We Talk About When We Talk About Love, no fim ele é um ator e só isso.
E a pressão de ter que ser um tipo de ator em prol de outro, o destruiu psicologicamente até ele dar um tiro na própria cabeça. Mas agora ele acordou. E se viu aceito. Ele perdeu o nariz no tiro, mas ele é amado pela elite intelectual que adorou o realismo de sua peça.
Sam visita ele trazendo flores, e comenta como ele está horrível com as bandagens. Depois que ela sai do quarto para pegar um vaso, ele levanta e se vê no espelho. As bandagens cobrem seu rosto parecendo uma máscara, com o nariz encurvado como um bico. Ele tira a sua máscara e vê seu novo rosto após a cirurgia plástica. Ao seu lado está o Birdman, mas o Birdman já não fala mais com ele.
Ele vai até a janela, contempla o mundo fora do hospital, abre a janela e pula da janela. Não muito surpreendente visto que ele quase pulou do prédio e atirou na própria cabeça. Teria ele se matado de novo?
Bom, Sam entra no quarto, não acha o pai e fica preocupada ao ver a janela aberta. Então ela se debruça para ver se acha o pai morto e não acha. Porém ela olha pra cima e ela vê… o pai está voando. E ela ri.
FIM DO FILME!
Pera… quê? Ela viu o Riggan voando? Então os poderes eram reais? Ou era tudo um sonho? Ou o que foi isso? E como o filme acaba assim? Que cena ambígua.
Então. Durante o filme fica meio-claro que os poderes de Riggan não são reais, que eles só existem nos sonhos acordados de Riggan ativados pela voz do Birdman constantemente em sua cabeça. Na cena em que ele sobrevoa a cidade ninguém parece notar que ele está voando, e quando ele desce no chão e entra no teatro, um taxista nervoso reclama que alguém não pagou a corrida, deixando implícito que Riggan na verdade fez o trajeto de taxi e só se imaginou voando.
Porque ele se imagina com os poderes do Birdman? Simples, pois não importa o que ele tente ser, é isso que ele é, ele é o cara que fez o Birdman nos cinemas, e seu público o ama ou o despreza por isso. E não é só o fato de que ele não pode fugir disso, é o fato de que ele também não quer. Ele tinha orgulho do Birdman, se se sentir épico e fodão. Por isso ele se via tendo os poderes de fazer tudo grandioso que o Birdman fazia até hoje.
E quando Sam o vê voando, ela o vê da mesma forma que ele se viu o filme inteiro. Sam é a única personagem (além da voz do Birdman se é que ela pode ser considerado um personagem separado de Riggan), que incentivou que Riggan parasse de investir em ser um artista pretensioso e aceitasse o Birdman. Parasse de implorar a aprovação de intelectuais elitistas e aceitasse a aceitação online que ele receberia se tentasse.
Bem, agora que ele tem ambos, a admiração online entre os jovens, e a admiração da crítica especializada, ele não precisa lutar para ser admirado, nem para ser amado. Ele pode ser o que ele nunca deixou de ser: o Birdman.
E sua filha ao vê-lo voando, o vê genuino, como quem ele é, como quem ela queria que ele admitisse ser. Livre das pressões que o forçaram ao suicídio. Livre.
Afinal o vôo sempre será o símbolo do homem livre.
E ao ver isso ela ri, ri de como o pai se livrou de ter que escolher quem ele era. De ver que o pai não está se forçando ou buscando mais aceitação. Ele morreu e renasceu como alguém que já não liga mais, não liga pra crítica e não ouve o que a voz em sua cabeça tem a dizer, renasceu livre.
E ele foi amado? Se sentiu amado sobre a terra? Bem, ele reconquistou a ex-mulher, com quem ele terminou por querer que ela o achasse um grande artista. Se reaproximou da filha, de quem se afastou por sua obsessão por prestígio. Pode-se dizer que ele deixou de confundir admiração com amor, e por isso ao final ele foi recompensado por ambos.
Ao custo de um tiro na própria cabeça. Ao custo de quase morrer em prol de sua obsessão.
E o filme mesmo, após expor e dissecar o quão cruel é o mundo que divide o prestígio da popularidade, ainda reconhece que não está acima disso. O filme em si é pretensioso e foi usado para dar um trampolim na carreira do ator do Batman. O filme chama a atenção por uma estética diferenciada de filmar tudo em um único plano-sequência que simula a sensação de tudo ser feito de uma vez só, que nem no teatro. O que não é verdade, obviamente tem dezenas de cortes no filme. Inclusive três momentos em que o corte é claro. Seja deixando a tela completamente preta ou completamente branca por uns instantes. Esses três momentos curiosamente, separam as quatro cenas de Riggan apresentando em público, como se separassem os atos da peça.
Curiosamente esse filme acabou de ganhar o Oscar de melhor filme, em uma competição onde seus dois maiores rivais eram: um filme constantemente elogiado pelo fato de que o diretor levou 12 anos para filmar, mas assim atingiu um novo patamar no cinema fazendo os personagens envelhecerem de verdade conforme o tempo passava no filme; e um filme sobre como para alcançar a verdadeira perfeição artística é necessário um constante sacrifício físico e psicológico, e que tudo é justificado em prol da perfeição artística. Todos com boas chances de ganhar e Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance), ganhou dos dois.
Tinha também um filme pelo qual o Virgem de Quarenta Anos é indicado ao Oscar pela primeira vez em sua carreira, contando a história real de John Du Pont, em um filme que tem muito pouco a ver com o resto de sua carreira. Que eu não mencionei antes, pois não era um dos favoritos ao prêmio, mas o mero fato de soar estranho ver Steve Carrel indicado ao Oscar dialoga com os temas que o filme expõe.