Uma coisa que me intriga em muitos filmes de animação, é o fato deles serem protagonizados por animais.
Não me refiro a protagonizados por animais de verdade, como os geniais The Fox and the Hound, ou The Brother Bear, onde eles falam, pensam e sentem, mas se portam como animais e vivem como animais. Me refiro aqueles onde os animais andam sob duas patas, usam roupas, tem empregos e vivem em uma sociedade civilizada.
Sabe aquela adaptação do Robin Hood da Disney onde o Robin é uma raposa, o Little John é um urso, e o Príncipe John é um leão? Disso que eu estou falando. Ou mesmo o Mickey Mouse e o Donald. Eles se comportam como seres humanos e vivem como seres humanos então por que que eles são animais?
Geralmente é para expor um pouco da personalidade dele no próprio visual do personagem. O esperto costuma ser uma raposa, o forte: um urso, o líder: um leão, o velho: uma tartaruga, o veloz: um coelho, e por ai vamos…
Mas fora isso, esse tema costuma virar uma ou outra piada ao longo do filme, mas sempre passa a sensação de que o filme seria exatamente o mesmo se os protagonistas fossem humanos.
E então, um ou outro filme, fazem algo um pouco melhor com isso, que coloque sentido e pensamento no fato de animais estarem usando roupas, andando em duas patas e tentando pagar o aluguel em dia.
O que é, em minha opinião, o mais notável desses filmes é o Fantastic Mr. Fox (O Fantástico Senhor Raposo), escrito e dirigido por Wes Anderson (em minha opinião, o melhor roteirista atual do cinema americano), e baseado em um livro infantil de Roald Dahl, o mesmo autor de Charlie and the Chocolate Factory (cujo livro eu não li, e não sei se aborda os temas que o filme trabalha da mesma maneira, então falarei a partir do filme, e qualquer mérito que eu dê ao filme que esteja no livro original, eu assumirei que torna o livro tão genial quanto o filme que ele originou).
O filme conta a história de Mr. Fox., dublado por George Clooney, e de sua constante dualidade entre sua metade antropomórfica e sua metade animal. Ele é um animal civilizado em uma sociedade de animais civilizados, que deseja ser mais selvagem do que a sociedade espera dele.
Mr. Fox é uma raposa. No passado, ele e sua esposa, Felicity (Meryl Streep), foram presos e quase mortos por fazendeiros ao tentar roubar galinhas, e a temendo a morte, Felicity fez Fox prometer que iria largar sua vida de animal selvagem inimigo dos fazendeiros, pois ela estava grávida. Fox promete para sua esposa que vai tomar jeito na vida e que não roubará comida de fazendeiros feito um animal selvagem.
Dois anos depois (ou doze anos-raposa depois), Fox está morando em um buraco no chão com sua esposa e filho. Ele é colunista em um jornal, seu filho vai para escola, e a vida da família é completamente humana e civilizada. Exceto na hora de comer, onde ele devora uma torta brutalmente e sem etiqueta nenhuma como uma raposa comum faria no lugar dele.
“Honey, I am seven non-fox years old. My father died at seven and a half. I don’t want to live in a hole anymore, and I’m going to do something about it.”
Porém Fox é infeliz. Ele não gosta de viver em um buraco, ele queria poder dar mais luxo a sua família, e resolve comprar uma casa em uma árvore extremamente bem localizada, na frente de três fazendas, dos três fazendeiros mais temidos da região. Bounce, Boggis and Bean. Isso ativa os instintos de Fox, ele se sente medíocre e em uma vida sem emoção, meramente pagando as contas, ele quer voltar a ter selvageria na sua vida, e se sente tentado a roubar comida das três fazendas.
Ele é pressionado pelo seu advogado a não comprar a casa, mas após rosnarem um pro outro por um tempo, Fox convence seu advogado, e com a ajuda do zelador, Kylie, um gambá gente boa que vira o seu braço-direito assim que eles se conhecem, ele quebra a promessa que fez a sua esposa e põe seus instintos acima da sua responsabilidade com a família.
“Who am I, Kylie? Why a fox? Why not a horse, or a beetle, or a bald eagle? I’m saying this more as, like, existentialism, you know? Who am I? And how can a fox ever be happy without, you’ll forgive the expression, a chicken in its teeth?”
E com esse discurso, Fox quebra a promessa que fez para sua esposa, e resolve invadir a fazenda de Bounce para roubar galinhas. Embora ele tenha saído do buraco, habitat das raposas, pois queria uma vida de luxo, seu prazer e seu orgulho estão em ser uma raposa, e ele precisa roubar fazendeiros para se sentir uma raposa de verdade.
O roubo é um sucesso. E Kylie acha que os roubos acabaram, mas eles só começaram. Agora Fox só pensa em roubar os gansos e patos da fazenda de Boggis. Ele envolve no roubo seu sobrinho Kristofferson, que está passando uma temporada na sua casa, e está sendo alvo da inveja de Ash, filho de Fox que odeia o fato do primo ser melhor que ele em tudo.
Mas a trama de Ash e Kristofferson fica em segundo plano para analisarmos o dilema de Mr. Fox.
A última fazenda a ser roubada é a de Bean. O mais cruel e perigoso dos três fazendeiros. Que cultiva maçãs e prepara a melhor cidra alcoólica de toda a região. Protegendo as cidras de Bean, está o Rato, antigo conhecido de Fox. Rato resolveu se aliar aos fazendeiros, em troca de cidra. Fox derrota o rival, e rouba a cidra de Bean. E é ai que o filme realmente começa.
Agora os três fazendeiros estão putos, e resolvem matar Mr. Fox a todo custo. Eles encurralam Fox em sua casa, e a raposa vê a si mesmo e a toda sua família como reféns. Após uma série de tiros, Bean arranca a cauda de Mr. Fox e pega para ele como troféu pessoal.
Lembrando sempre que a cauda é um dos elementos mais característicos que muitos animais selvagens possuem e nenhum (ou quase nenhum) ser humano tem. Um símbolo do lado mais raposa de Mr. Fox, e do orgulho que ele tem em ser um animal selvagem.
Após os fazendeiros invadirem a árvore da família com escavadeiras, Mr. Fox resolve apelar para seus instintos e cavar um buraco junto com sua família para fugir dos seus inimigos. No buraco sua esposa o chama para uma conversa privada que começa com ela se descontrolando e arranhando a cara dele deixando uma cicatriz.
Felicity pergunta porque o marido colocou toda a família em risco desse jeito, e a resposta só pode ser uma “Because I’m a wild animal.”, mas ela lembra ele de que além de um animal selvagem ele era um pai e um marido. E que a história do animal selvagem é previsível, no fim, todos eles morrem, até Mr. Fox resolver mudar.
O cerco aumenta. Os fazendeiros cercam a saída pro buraco com snipers e bombas e a vida dentro de um buraco se torna mais perigosa. Mr. Fox se sente humilhado com Bean usando a cauda dele como gravata. E para piorar, eles encontram todos os animais da vizinhança no túnel subterrâneo, e descobrem que os hábito selvagens do protagonista prejudicou a vida de todo mundo, pois todas as casas de animais foram atacadas.
Não pesa na narrativa, mas colabora na sua temática, Phill, a toupeira lamenta que por culpa de Mr. Fox, ela não pode mais ver a luz do sol. A raposa o corrige falando que ele não poderia ver de qualquer jeito, sendo uma toupeira, os olhos dele sequer deviam abrir direito na luz do sol. A toupeira fala que já está farta de ouvir desculpas e quer os próprios direitos.
Sim, pois embora todos os personagens tenham que equilibrar sua metade animal com sua metade civilizada, o Mr. Fox é o único que sempre coloca a metade animal em primeiro plano, o único que vai questionar uma toupeira querendo ver o sol. Todos os demais tem seus vestígios de animal selvagem se manifestando de vez em quando, mas são essencialmente pessoas.
Nosso herói se sente responsável por todos os animais que ele prejudicou e que tem chance de morrer num buraco sem comida ou água. Então ele resolve compensá-los, porém sendo a raposa que ele é, seu plano para ajudar os animais é a única coisa em que ele pensa. Ele resolve que eles vão todos cavar tuneis até as fazendas dos fazendeiros e roubar ainda mais deles para se sustentar no buraco.
Bom, agora os animais estão vivendo bem embaixo do buraco, eles têm comida, têm água, têm cidra, e estão festejando, tocando musica. E durante o banquete de comemoração dos animais, Mr. Fox faz um grande discurso sobre como eles humilharam os fazendeiros, e sobre como eles serem capazes de se deliciar naquele banquete é uma vitória pessoal para eles. Mesmo que seja em um buraco após perderem suas casas.
O discurso é interrompido, pois o buraco é inundado. Completamente inundado pela cidra de qualidade de Bean, que ele sacrifica para poder se livrar da raposa. Os animais são levados pela inundação de cidra até os esgotos. Onde Mr. Fox nota que seu sobrinho Kristofferson não está lá.
Sim, pois Ash e Kristofferson resolveram antes do banquete invadir a casa de Bean e tentar roubar a cauda e o orgulho de Mr. Fox de volta. Eles foram pegos no ato pela esposa de Bean, Ash conseguiu escapar, mas Kristofferson não.
Mr. Fox está devastado de seu sobrinho ter sido capturado pelo seu inimigo, e todos estão presos no esgoto ainda sem suas casas e suas vidas.
Mr. Fox vai refletir sobre a consequência de suas ações na frente de uma cachoeira de esgoto. Ele sabe que os fazendeiros não vão parar nunca até o matarem, e agora eles capturaram seu sobrinho, por isso ele vai se entregar. Sua esposa implora que ele não se entregue e lamenta que ele tenha colocado todos em um dilema tão cruel. Ele confessa para a esposa que ele precisa se sentir impressionando todo mundo com sua maestria e inteligência para que os outros acharem ele fodão, ou ele não se sente bem consigo mesmo. E que o que ele sabe fazer é ser uma raposa, no fim ele é um animal selvagem. Ele decide compensar pelos seus erros. Ele pela primeira vez na vida, fala pro filho que tem orgulho dele e marcha em direção à saída do esgoto para seu sacrifício final.
O sacrifício heroico é cancelado, quando os animais que ficaram para trás partem em uma missão de resgate de Kristofferson, e Ash acaba sendo sequestrado pelo cruel Rato que trabalha para Bean.
Mr. Fox volta pelo filho e tem uma luta até a morte com o Rato. Em seu leito de morte, o capanga sujo ajuda seu inimigo e conta onde Kristofferson está sendo mantido. Após questionado por que ele traiu os animais e se aliou aos humanos ele responde que foi pela cidra. Em sua morte Mr. Fox declara que ele se redimiu, e que mesmo redimido ainda não passa de um rato aleatório morto atrás da lata de lixo de um restaurante chinês. Imediatamente após redimir o Rato, a raposa tira toda a antropomorfização dele e o descreve como um mero animal.
Mas agora que ele sabe onde o sobrinho está, é hora de desistir do suicídio e de resgatar o garoto. Em seu novo plano, Mr. Fox faz um grande discurso, ele vira para todos os animais ao seu redor e primeiro se dirige para eles os chamando por suas profissões: “I see: two terrific lawyers, a skilled pediatrician, a wonderful chef, a savvy real estate agent, an excellent tailor, a crack accountant, a gifted musician, pretty good minnow fisherman, and possibly the best landscape painter working on the scene today.”, e logo imediatamente ele completa “I also see a room full of wild animals.”, ele exalta cada um de seus colegas por suas habilidades, mas não aquelas que eles adquiriram com estudo e experiência de vida, as habilidades de suas espécies diferentes cravadas em seu DNA e como elas podiam ser usadas para salvar Kristofferson.
O plano em si não usa tanto as habilidades de cada espécie no ponto de vista mais selvagem como Mr. Fox propôs. Infelizmente. O plano na verdade era marcar um ponto de encontro com os fazendeiros para oficialmente se render, e nesse ponto arremessar um monte de pinhas em chamas para por fogo em tudo. Na confusão ele, Kylie e Ash roubavam uma moto e iam em direção a Kristofferson.
Resumindo bem o resgate, eles encontram o garoto, o libertam, e fogem dos fazendeiros e ainda conseguem roubar o rabo de volta (embora não intacto). E no caminho de volta os quatro se deparam com um lobo.
Isso porque ao longo do filme Mr. Fox comentou sobre sua grande fobia por lobos, era uma piada recorrente: ele sente pavor de lobos. E agora eles encontram um, não de uma distância ameaçadora, mas longe, em cima de uma pedra. Nu e sob quatro patas no meio da natureza. Mr. Fox para a moto para admirar o animal que tanto o assusta. Ele tenta falar com ele e chega a conclusão de que o Lobo não falava inglês (nem latim). Ele explica pro Lobo sobre sua fobia e é novamente ignorado. Mr. Fox chora de admiração pelo animal e simplesmente levanta o punho para saudá-lo. O lobo finalmente reage e levanta o punho de volta a Mr. Fox. A raposa reconhece no lobo uma criatura bela, e o deseja sorte e o lobo se adentra no bosque.
E é isso. Embora Mr. Fox tenha lutado o filme inteiro para ser um animal selvagem. Ele tem uma fobia imensa deles. O sentimento dele pelo Lobo, o único animal do filme é de medo e respeito ao mesmo tempo. Afinal apesar de seu discurso, e de sua preferência pelo seu lado selvagem o protagonista nunca abandonou realmente seu lado antropomórfico. A linha que o separa do lobo é uma linha que ele jamais conseguirá cruzar, independente do que ele diga ou sinta. Ele se sentia humilhado morando em um buraco, que é onde as raposas moram. Sente uma responsabilidade em ser um pai de família. Ele desejava ser selvagem, mas nunca poderia perder a dualidade.
Assim como todos os outros animais desejam ser civilizados e antropomórficos, mas regularmente deixam escapar seu lado selvagem, na hora de brigar e na hora de comer. Todos eles devoram seu alimento brutalmente, ou lutam como feras na hora que ficam putos.
E é esse o dilema do filme. Eles são animais selvagens ou animais civilizados? No fundo eles são os dois. Alguns preferem a vida civilizada e alguns preferem a vida selvagem, mas nenhum vai ter uma vida dessas completa. Só o lobo, mas o lobo causa temor, e também admiração.
Embora derrotados, os fazendeiros continuam cercando os bueiros, em algo que indica que provavelmente vão cercá-lo pelo resto da vida. E os animais transformaram o esgoto em um complexo de apartamentos. Ironicamente as ações de Mr. Fox os deixou ainda mais antropomórficos, trocando suas casas na natureza por casas completamente humanas. Os animais vivem ligeiramente pior no esgoto, mas Mr. Fox apresenta para eles uma solução.
Ele conhece uma passagem de esgoto que dá em um supermercado de onde eles podem roubar comida. No supermercado ele descobre que sua esposa está grávida novamente e faz seu discurso final para seus amigos. Eles diz que roubar de um supermercado é menos ideal, e que a situação deles é menos ideal do que já foi, e que eles não vão recuperar o que perderam. Mas que agora que eles acharam outra fonte de comida, eles podem sobreviver. E isso que importa.
E o filme termina com a revelação de que os donos do supermercado são os mesmos três fazendeiros que Mr. Fox tanto sacaneou ao longo do filme.
Wes Anderson em seus filmes mantém uma marca de nos mostrar personagens frustrados e deprimidos com suas vidas, e em Fantastic Mr. Fox, ele aproveitou o fato dos personagens serem animais para trabalhar essa frustração em uma curiosa mistura de dualidade da natureza contra a criação com uma identificável crise de meia idade. Ao final o Mr. Fox não mudou quem ele era, e jamais mudará, e a vida de todos piorou, mas ele é feliz, e conseguiu deixar a familia feliz, pois ele faz o que ele ama. Ele não é um completo animal selvagem, mas ele não se rendeu a antropomorfização e isso o faz feliz.
Sério, Wes Anderson é um genuino fodão, recomendo que vão todos ver O Grande Hotel Budapeste antes do Oscar desse ano.